sexta-feira, 24 de junho de 2011

O maravilhoso (e misterioso) em Krzysztof Kieślowski & Cia



                                                                        Ubiracy de Souza Braga*


Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).


              A carreira cinematográfica de Krzysztof Kieślowski se divide entre a fase polonesa e a francesa. Depois de concluir a faculdade, o jovem diretor começa a produzir documentários. A narrativa dos documentários passa a influenciar os primeiros filmes de ficção do diretor. “A Cicatriz”, “Blind Chance” e “Amador” são exemplos desse estilo. Mais tarde, Kieślowski realizou para a televisão polonesa uma série de filmes baseados nos Dez Mandamentos (chamada Dekalog, 1989) – “um filme por mandamento” (sic), todos tratando de conflitos éticos e morais. Dois deles, em especial, foram transformados em longa-metragens: “Não Amarás” e “Não Matarás”. O primeiro, onde um funcionário do correio obcecado por uma mulher madura e independente tenta uma aproximação, mas é um voyeur. O segundo, através de uma visão amarga da vida, e cena das mais chocantes da história do cinema, mesmo se comparado à The Hope, de Alfred Hitchcock (cf. Braga, 2008).

O cineasta aprimora seu estilo ao realizar seus próximos filmes. Os quatros últimos filmes do diretor foram realizados através de uma produção francesa: “La Double Vie de Véronique” (1991, 94 minutos, estrelando Irène Jacob) e a “Trilogia das Cores”: “Bleu” (1993), “Blanc”, (1994), “Rouge” (1994). Ao assistir na sequência percebem-se as correlações que existem entre as distintas histórias, as cores da bandeira francesa e o slogan da revolução clássica burguesa. O toque de Kieslowski está na sua representação das palavras “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade” e na forma em que as cores dão o ambiente psico-afetivo da história política. Outro ponto interessante é reparar no cruzamento de elementos em comum entre os três filmes. Depois do último filme da trilogia o diretor anunciou a sua aposentadoria “devido ao fato de estar cansado de fazer cinema”. Ipso facto, salvo engano, como cristão começa a escrever o roteiro da trilogia “Paraíso, Purgatório e Inferno”, baseada na Divina Comédia de Dante Alighieri. Kieślowski morre em 1996, aos 54 anos, sem concluir esses filmes. Contudo, em 2002, Tom Twyker filma o roteiro de “Paraíso”, idealizado pelo magistral cineasta polonês.


            Em “La Double Vie de Véronique”: Weronika vive na Polónia. Véronique vive em França. Não se conhecem uma à outra, mas ambas sentem que não estão sozinhas no mundo. Weronika aceita um lugar numa escola de música, trabalha com afinco, mas morre na sua primeira atuação pública. Nesse preciso momento, a vida de Véronique parece levar uma volta e esta desiste de cantar. Cada um de nós tem alhures no mundo, o seu exato duplo, alguém que partilha os nossos pensamentos e os nossos sonhos. Weronika consegue uma vaga em uma escola de música, trabalha duro, mas tem um colapso em sua primeira performance e morre. Neste ponto, a vida de Véronique parece mudar e ela decide não ser mais seguir a carreira musical.

            Depois de se firmar como um dos maiores diretores de cinema da Europa, através de uma prolífica obra que contrabalançava documentários, dramas vigorosos e filmes feitos para a TV, como vimos, Kieślowski iniciou a década de 1990 buscando vôos mais altos. O rumo natural tem como parti pris ir filmar na França, país que o conhecia e respeitava através do Festival de Cannes, e onde o dinheiro mais generoso lhe permitiria sofisticar sua produção cinematográfica. “A Dupla Vida de Véronique” marca a primeira produção internacional de Kieślowski, e é um drama maiúsculo através do qual o cineasta investiga, à sua maneira delicada, um tema típico do folclore romântico europeu – o doppelgänger. Muito popular entre gênios literários do século XIX, como Shelley, Byron e Guy de Maupassant, a lenda do doppelgänger remonta a velhas fábulas germânicas.
O mito, antropologicamente falando, ensina que “cada ser humano possui um duplo, chamado exatamente doppelgänger, que é fisicamente idêntico a si”. Este duplo está em algum lugar do planeta, e se conecta ao seu idêntico por laços afetivos e emocionais de natureza sobrenatural. A ideia casa perfeitamente com as teorias sobre “coincidências”, “acasos” e “destinos” que Kieślowski já vinha desenvolvendo desde o “Decálogo”, que fizera para a TV polonesa em 1989. Nada mais natural que, ao migrar para o país que fora no século XIX o centro difusor maior da ideia do doppelgänger, Kieślowski aproveitasse o tema para continuar abordando a temática das “ligações invisíveis entre pessoas que não se conhecem”.
Kieślowski então criou duas personagens fascinantes, mas, sobretudo entre criador e criatura, o “maravilhoso”, entendido por nós pela compreensão de que a filosofia tem origem na thaumadzein, o “maravilhar-se e ser tomado de espanto, o padecer, que é o mister do filósofo” (mala gar philosophou touto to pathos, to thaumadzein; ou gar allē archē philosophias hē hautē [Teeteto, 155d]), afirmação mais tarde citada quase que literalmente por Aristóteles, embora com uma interpretação diferente (cf. Metafísica, i, 982b9) ipso facto para elas tem a representação (εκπροσώπηση) de um jogo lúdico enfocando a ideia do duplo. Weronika (Irène Jacob) é uma jovem cantora lírica que mora em Cracóvia, na Polônia. Já Vèronique (a mesma Jacob), também amante de música, vive em Paris. Elas não se conhecem, mas sentem a presença (dasein) uma da outra, muito embora não consigam explicar este sentimento. Na primeira meia hora, Kieślowski acompanha a jovem polonesa, até uma tragédia se abater sobre ela; depois, passa a espiar o cotidiano de Vèronique. Na cena mais fascinante do filme, salvo engano, as duas quase se cruzam, em uma praça na Polônia, durante uma manifestação política estudantil. Uma fotografia fortuita documenta a presença das duas mulheres idênticas no mesmo local. Isto é maravilhoso (thaumadzein)!
Já em “Bleu”, o drama toma conta da história. Conhecemos Julie (Juliette Binoche), que após perder o marido e a filha em um acidente de carro, renega tudo e todos e passa a viver evitando tudo que lhe cause qualquer emoção. O silêncio dá o tom, com o diretor mostrando uma riqueza de detalhes “fantástica”, como mundo maravilhoso (como quando o médico avisa Julie da tragédia) e focando em objetos e pontos aparentemente vazios para explorar a “solidão da protagonista”. Já “Blanc” é um filme mais leve, mas não menos tenso. Nele, Karol (Zbigniew Zamachowski) leva a vida com uma “incrível falta de tato e principalmente de sorte”. Sua mulher Dominique (Julie Delpy), o abandona às traças porque simplesmente ele não dá mais conta do recado de satisfazê-la. Karol então volta para a Polônia e trama calmamente sua vingança contra a ex-mulher, que apesar da sua raiva não acontecerá de maneira gratuita, pois ele ainda a ama.

Contudo, o toque de mestre de Kieślowski chega em “Rouge”, um drama centrado em redenção e busca apimentado com desilusões, tristezas e rotina, no sentido da “rotinização” weberiana do termo. Valentine (Irène Jacob) é uma modelo que vive em Paris e vê sua vida meio em frangalhos, longe do namorado e vendo sua família ruir. Ao conhecer um juiz aposentado (Jean-Louis Trintignant) que passa o resto da vida a espionar os vizinhos, Valentine vê sua vida mudar e tomar rumos inesperados. Nesses três filmes da trilogia, Kieślowski uniu emoção, sentimentos e degradação humana (como na cena de pavor de Juliette Binoche entre ratos num sobrado que alugara em Paris) em um momento único da Europa, que passava por um processo todo especial após a queda do Muro de Berlim em que a banda Pink Floyd cantava: “All in all it's just another brick in the wall/All in all you're just another brick in the wall” (“Apesar de tudo ele é apenas mais um tijolo na parede / Tudo em você é só mais um tijolo no muro”).
Enfim, “Decálogo” (Dekalog, Polônia, 1987), de Kieślowski, é um projeto difícil de classificar e árduo de descrever. Alguns críticos preferem vê-lo não como um filme, mas “como dez médias-metragens independentes entre si”. Eles não estão errados, mas também não estão certos. Difícil de entender? Claro que não! As dez histórias independentes de “Dekalog” possuem uma unidade temática e narrativa rara. Você pode ver um só episódio ou os dez pari passu e então perceber conexões aparentemente invisíveis entre elas. De qualquer forma, a minissérie filmada para a TV polonesa está sendo, desde 2000, comercializada como um único pacote de três DVDs, nos EUA. O formato é virtualmente perfeito para introduzir o espectador num dos projetos mais densos e belos já formatados para a telinha da TV. Em “Dekalog” é Kieślowski – o último dos grandes cineastas europeus a beber na fonte do existencialismo, de Soren Kierkegaard a Jean-Paul Sartre, guardadas as proporções como a exemplo de Bergman e Antonioni (cf. Braga, 2007) - na plenitude de seus poderes de dramaturgo.

Nas dez histórias, todas ambientadas em um conjunto residencial de Varsóvia, pessoas comuns enfrentam “problemas cotidianos” (cf. Heller, 1972; 1983; Certeau, 1980) que se manifestam em diversas camadas de significados. Nas histórias, Kieslowski propõe uma discussão livre sobre temas universais da condição humana: amor, culpa, solidão, amizade, tristeza, ética, medo. Conquanto a ideia inicial do cineasta, que escreveu os dez roteiros junto com o parceiro Krzysztof Piesiewicz, tinha como objetivo fazer um pequeno filme sobre cada um dos Dez Mandamentos. O projeto partiria de uma reflexão mais ampla, embora paradoxal a respeito da decadência dos valores católicos em uma Polônia transformada durante o século XX, em terra devastada, pelos nazistas, tal como fizera Ingmar Bergman em O Ovo da Serpente (Das Schlangenei, EUA/ALE, 1978) e depois em território de “ateísmo obrigatório”, pelos comunistas.

Enquanto escrevia as histórias, contudo, Kieślowski mudou de ideia. Paradoxalmente retirou todas as referências à política, ao tempo e ao país, para dar dimensões em tempo/espaço mais universais à narrativa. O fio narrativo comum é o “espaço”, enquanto “lugar praticado”, para lembrarmos da fenomenologia de Michel de Certeau em L`Invention du Quotidienne (1980), em que as tramas se desenrolam. O conjunto de apartamentos, com sua arquitetura monótona típica dos países do Leste europeu, ou de nuestra Havana de Tomaz Gutierrez Alea, demonstradas nas cenas internas e externas em Hasta certo punto ou Fresa y Chocolate, sugere outrossim, que dentro de cada uma daquelas janelas, um drama universal e, ao mesmo tempo, particular se desenrola. Kieślowski sugere ter escolhido, quase aleatoriamente, dez dessas histórias para narrar.

Na vizinha Alemanha caiu o muro de Berlim, símbolo epigramático do comunismo. Começou uma nova época na história dos ex-países da chamada “democracia popular” e em consequência uma nova fase na história do cinema polonês. Apesar da censura ter sido eliminada, apareceram outros problemas ligados ao mercado livre: luta pelo público, concorrência etc. Aliás, este processo social de comunicação (cf. Braga, 1993) já havia iniciado nos anos 1980. Conquanto no início dos anos 1990, a produção do cinema na “Polônia tinha um aspecto de estagnação e a presença de filmes poloneses nas telas de cinemas era insignificante”. Wojciech Marczewski realizou provavelmente um dos únicos e mais significantes filmes daquela época, “A fuga do cinema Liberdade” (“Ucieczka z kina Wolność”, 1990), tendo como roteiro “o comunismo e como herói principal, um censor”. Filmes brutais, cheios de vulgarismos, cheios de tiroteios e sangue foram criados por Władysław Pasikowski, que assim quis demonstrar a sua originalidade: (Kroll - 1991, Cachorros / Psy - 1992), (Cachorros II O último sangue / Psy II - Ostatnia krew - 1994), (“Os demônios da guerra de acordo com Goia”/ “Demony wojny według Goi”, 1998), (“Operação Samum / Operacja Samum” – 1999; Reich, 2001). Eles criaram um novo tipo de estrela de cinema, um macho polonês, cada vez incorporado por Bogusław Linda, felizmente não se esquecendo dos outros papéis mais ambiciosos.
Em comemoração aos 100 anos da indústria cinematográfica na Polônia, o Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB, no Rio de Janeiro trouxe ao Brasil 14 trabalhos que retratam um século de história cultural e política do país. Os filmes estiveram presentes na mostra de 10 de fevereiro a 1º de março de 2009. Os filmes ilustraram riqueza, criatividade e aspectos específicos da criação cinematográfica em várias épocas. A mostra é inédita e parte dos primórdios do cinema polonês que começara no final do século XIX. Cineastas reconhecidos mundialmente, como Kazimierz Prószyński, Wajda, Zanussi, Jakimowski, Bugajski, Kawalerowicz, estiveram à disposição dos telespectadores. No final dos anos 1990 e o início do século atual é um tempo de superproduções. A Polônia investiu em adaptações das obras da literatura polonesa, época de retorno do filme histórico e pontual.
            Desnecessário dizer que Andrzej Wajda é um cineasta famoso internacionalmente na Polónia. No final dos anos 1950, quando o cinema polonês estava em pleno florescimento, como no caso brasileiro, após a Segunda Guerra Mundial, Wajda fez os filmes “Canal” e “Cinzas e Diamantes” e ele era um líder da Escola Polonesa. Desde aquela época ele trouxe notoriedade e uma grande contribuição para o desenvolvimento da arte do cinema, continuamente lançando filmes extraordinários feitos com profunda sensibilidade e poder de composição elaborada. O cineasta polonês Wajda ganhou seu lugar na história política com o seu: “1977, versão teatral”, ou, “O Homem de Mármore”, uma crítica da ideologia soviética, que foi um ato público importante da dissidência na Polônia comunista. Mas seu lugar na história do cinema, provavelmente, descansa com seus três primeiros recursos, “Uma geração” (1955), “Kanal” (1957) e “Cinzas e Diamantes” (1958), as visões da Polônia durante e logo após a Segunda Guerra de proporções mundiais, onde ele pretendeu como os historicistas clássicos recontar as origens do estado comunista polonês.


Bibliografia geral consultada:
ENGELS, Friedrich, “O Aniversário da Revolução Polonesa de 1830”. Publicado pela primeira vez em La Réforme, de 5 de dezembro de 1847; BRAGA, Ubiracy de Souza, “Teoria da Comunicação e Valor-de-Informação: Novos Fundamentos”. Conferência escrita e falada em homenagem ao Prof. Dr. João Aloísio Lopes. In: XVI Congresso Brasileiro de Pesquisadores da Comunicação – INTERCOM. UFES/Deptº de Comunicação Social. Vitória, 3 a 7 de setembro de 1993; Idem, “Tony Blair, proxeneta da modernidade capitalística”. Disponível em: http://www.cienciasocialceara.blogspot.com/2011/06; Idem, “45 anos d`A Batalha de Argel, 50 anos de Monsieur Frantz Fanon”. Disponível em: http://www.jornaldagrandebahia.com.br/25/05/2011; Idem, “Bergman e o espelho da angústia contemporânea”. Disponível em: http://www.dapraianet.blogspot.com. Max Krichanã Editor, 2007; Idem, “Fábulas de Solidariedade: Neruda, Kurosawa e Hitchcock”. Disponível em: http://www.dapraianet.blogspot.com. Max Krichanã Editor, 04/02/2008. Sobre a letra integral da banda Pink Floyd está disponível em: http://www.vagalume.com.br/pink-floyd/another-brick-in-the-wall.html;HELLER,Agnes, O Cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972; Idem, A Filosofia Radical. São Paulo: Brasiliense, 1983; FROMM, Erich, El miedo a la libertad. 3ª edição. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1957; SATRIANI, Lombardi, Antropologia culturale e analisi dela cultura subalterna. Milano: Rizzoli Editore, 1980; ZUSMAN, Waldemar, Os Filmes que vi com Freud. São Paulo: Imago, 1994; CERTEAU, Michel de, La Culture au Pluriel. Paris: Union General d`Editions, 1974; Idem, L` Ecriture de l`Histoire. Paris: Editions Gallimard, 1975; Idem, L` Invention du Quotidienne. Vol 1. Arts de Faire. Paris: Union Générale d`Editions 10-18, 1980; SAFRANSKI, Rüdiger, Nietzsche. Biografia de uma Tragédia. São Paulo: Geração Editorial, 2005; SCHORSKE, Carl E., Viena fin-de-siècle - Política e cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 1988; SIBONY, D., Les Corps et sa Dance. Paris: Éditions du Seuil, 1995; SIMMEL, Georg, La Tragédie de la Culture. Paris: Petite Bibliothèque Rivages, 1988 entre outros.

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