segunda-feira, 25 de julho de 2011

“João de Deus” e a Reinvenção do Populismo Católico.


                                       
                                                                            Ubiracy de Souza Braga* 

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Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências, DSc.  junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).


          
Pelas regras da Igreja Católica, o processo de beatificação só poderia ser aberto cinco anos depois da morte da pessoa. Essa regra canônica pode ter sido dispensada pelo atual papa pelo fato de que Bento XVI foi seu colaborador mais próximo durante mais de 20 anos. Na igreja dos primeiros séculos o martírio representou o sinal de santidade da pessoa. Hoje, trata-se de um processo no âmbito do Direito Canônico, no qual é verificada a vida conforme as virtudes morais entendido como “grau heroico”, melhor dizendo, além do comum, e é necessário que a igreja reconheça o acontecimento de dois milagres (um para a beatificação e outro para a canonização) por intercessão do falecido.
            Se o populismo (популизм), na expressão de V. Tvardovskaia (1972) no sentido simplificado do termo,  pode ser entendido como um processo mediante o qual “o popular se torna conhecido” (cf. Weffort, 1968b), quando uma multidão de 400 mil pessoas reunidas na Praça de São Pedro, no Vaticano, durante o funeral do Papa João Paulo II, em abril de 2005 gritava: “Santo Súbito!” temos assim, “sinais” (cf. Ginzburg, 1992: 158 e ss.) de que o papa reinventava o “populismo católico” para o mundo. Ipso facto esta expressão fará com que “João de Deus” – como é conhecido no Brasil – seja beatificado seis anos após a sua morte. Normalmente, como sabemos, a igreja leva cinco anos só para iniciar todo o processo. Além disso, temos um fato político-religioso novo: o processo se deu mais rápido, porque este era um desejo do povo, que queria que ele fosse canonizado já no dia de seu funeral. Com 27 anos de pontificado, “João de Deus” foi o terceiro papa a passar mais tempo no cargo, perdendo apenas para São Pedro (30 d.C. – 67 d. C.) e Pio XII (1846-1878).
            Além disso, ele foi o primeiro papa a rezar em uma sinagoga, em Roma (Itália), o primeiro a entrar em uma mesquita em um país islâmico, em Damasco, na Síria, e o primeiro a presidir um encontro de líderes das maiores religiões mundial, no ano 1986. Não devemos perder de vista, que no ano de 1981, o extremista turco Melhmet Ali Ağca tentou matar o papa, atirando na Praça São Pedro.



 Nascido a 9 de janeiro numa família pobre da Turquia foi o terrorista que cometeu o atentado contra o Papa João Paulo II em 13 de maio de 1981, quando este circulava “em carro aberto” pela Praça de São Pedro no Vaticano. Em segundo lugar João Paulo II será o primeiro pontífice em mil anos a ser beatificado pelo seu sucessor. O processo foi aberto em junho de 2005, por iniciativa do papa Bento XVI, a quem coube decidir pela aceleração da beatificação, sob alegativa de que “não pretendiam esperar os cinco anos de morte previstos no Código de Direito Canônico”. Pragmaticamente falando, em janeiro deste ano, o papa Bento XVI aprovou decreto atribuindo um milagre a seu antecessor, o que abriu a démarche para a beatificação. O milagre atribuído a Karol Wojtyla é a cura, aparentemente inexplicável, da freira francesa Marie Simon-Pierre, de 50 anos.
            As respostas às práticas populares em “nome” de uma democracia foram sempre abafadas com sangue e terror psíquico pelo Estado Soviético como demonstra cabalmente Alexander Issaiévich Soljenítsin, no conhecido livro Ум диаметром па-де-Вида Иван Deníssovitch (Um dia na vida de Ivan Deníssovitch), e todas essas práticas passavam como por despercebido a todo Mundo, devido à política de censura perversa e masoquista da mídia e de perseguição a jornalistas ou quaisquer um que se opusesse ao governo central - isto é o que se chamava sociologicamente “Cortina de Ferro”, derrubada com a política da Glasnost, de Mikhail Gorbachev, o então presidente soviético. Quando a notícia era inevitável e caía sob aclamação do público mundial, como ocorreu com o Sindicato Solidariedade, na Polônia Solidarność; nome completo: “União Comercial auto-governativa ´Solidariedade`”, melhor dizendo, Niezależny Samorządny Związek Zawodowy ´Solidarność` é “uma união federativa comercial fundada em setembro de 1980 nos Portos de Lenin, originalmente liderada por Lech Wałęsa”. Do ponto de vista histórico, vale lembrar, que ela fora a primeira união comercial não comunista em um país dito comunista e que Karol Wojtyla tão bem a reconhecia e certamente apoiava.
Lech Wałęsa e o Papa João Paulo II
            O indivíduo, ator, identidade, grupo social, classe social, etnia, minoria, movimento social, partido político, corrente de opinião pública, poder estatal, todas estas “manifestações de vida” no sentido simmeliano do termo, não mais se esgotam no âmbito da sociedade nacional, o que nos faz admitir que a diferenciação em comunidades locais, tribos, clãs, grupos étnicos, nações e até mesmo Estados, perderam ao menos algo do seu significado anterior. Na sociedade global, de outra parte, generalizam-se as relações, os processos e as estruturas de dominação e apropriação, antagonismo e integração. Modificam-se os indivíduos, as coletividades, as instituições, as formas culturais, os significados das coisas, gentes e ideias, vistos em configurações histórico-sociais. Enfim, se as ciências sociais nascem e desenvolvem-se como forma de autoconsciência científica da realidade social, pode-se imaginar que elas podem ser seriamente desafiadas quando essa realidade já não é mais a mesma. Nesse sentido é que a formação da sociedade global pode envolver novos problemas epistemológicos, além de ontológicos.
Enfim, para concordarmos com Leonardo Boff (2000; 2007; 2009; 2010),
temos que desenvolver urgentemente a capacidade de somar, de interagir, de religar, de repensar, de refazer o que foi desfeito e de inovar. Esse desafio se dirige a todos os especialistas para que se convençam de que a parte sem o todo não é a parte. Da articulação de todos estes cacos de saber, redesenharemos o painel global da realidade a ser compreendida, amada e cuidada. Essa totalidade é o conteúdo principal da consciência planetária, esta, esta sim, a era da luz maior que nos liberta da cegueira que nos aflige” (Boff, 2007; 2010).
            Do ponto de vista teórico-metodológico Carlo Ginzburg tem um percurso de pesquisa dos mais originais e criativos, que extravasa o quadro da historiografia italiana (cf. Ginzburg, 1991: 169 e ss.) e mesmo da historiografia europeia. A sua obra, com efeito, introduziu diversas rupturas nas maneiras de pensar em História, mobilizou metodologias e instrumentos de conhecimento oriundos de outras áreas de saber, estabeleceu novas zonas de dialogo com as restantes ciências humanas e sociais, nomeadamente com a antropologia e a filosofia (cf. Ginzburg, 1991: 203 e ss.).  Enfim, trata-se aqui de uma intervenção ativa, que procura inverter as relações tradicionais de subordinação da História no que diz respeito à produção dos meios de conhecimento, centrada numa forte preparação filológica, caracterizada pela atenção ao detalhe, ao estudo de caso, à analise do processo significativo, com a valorização dos fenômenos aparentemente marginais, como os ritos de fertilidade, ou dos casos obscuros, protagonizados pelos pequenos e excluídos, cuja verdadeira dimensão cultural e social vem sendo valorizada (cf. Ginzburg, 1988: 96 e ss.).
            Outro aspecto relevante na vida política de João Paulo II é que ele foi louvado como grande liderança na arena politica internacional. Só ao Brasil, o pontífice realizou três visitas oficiais. A primeira, em 1980, foi a mais marcante. Com apenas dois anos de pontificado, João Paulo II desembarcou em Brasília no dia 30 de junho, onde se ajoelhou e beijou o chão. O gesto célebre, que ele repetia sempre que visitava um país pela primeira vez, virou a sua marca. Na ocasião de sua primeira viagem ao país, o papa percorreu treze cidades em apenas doze dias. O evento mais marcante de sua passagem foi a celebração de uma missa campal no maior estádio do mundo, o Maracanã, no Rio de Janeiro, no vigor de seus 58 anos para cerca de 160 mil fiéis presente, cantando o refrão da música tema de sua visita ao país. Foi nessa primeira visita que o papa veio a Fortaleza e durante a sua passagem ele celebrou uma missa para um Estádio Castelão que atraiu cerca de 120 mil pessoas contando ainda com a presença do Frei Aloisio Lorscheider. 
            Finalmente, conversar com alguém no “campo da contemplação” é utopia pois a  palavra etimologicamente foi cunhada a partir dos radicais gregos οὐ, e τόπος, portanto, o “não-lugar” ou “lugar que não existe”, posto que positivamente a palavra tanto no plano de análise teórica ou mesmo na esfera de análise ideológica suscita dúvidas e alimenta controvérsias. E desde já vamos apenas lembrar acerca do uso de determinadas palavras que tiveram, desde o princípio de sua origem, um sentido subjetivo. Uma delas é o dekeō (dokē, etc) que se refere a pensar, esperar, acreditar, ter em mente, sustentar uma opinião, relacionado com a doxa, opinião. Conceitos igualmente relacionados são dekomai – aceitar, esperar; dokimos – aceite, aprovado; e dokeuō – esperar, ver atentamente, estar de emboscada. Assim como, a palavra peithō, persuadir, com o significado de conquistar, de fazer as coisas parecerem plausíveis ou prováveis – subjetivamente prováveis, e como é óbvio, não existem quaisquer dúvidas acerca do significado fundamentalmente subjetivo destas palavras, que desempenham um importante papel na história da Filosofia desde os tempos mais remotos.
Em determinado momento de minha vida um “crítico” da universidade de São Paulo advertiu-me que o título de meu trabalho era enganoso. Não o levei a sério porque ele é jornalista. Estão fazendo doutorado ex nunc, mas continuam sendo jornalistas. Quando fazem crítica, deixam de serem jornalistas. Quando atuam como jornalistas, não fazem crítica. Nessa área de conhecimento, salvo honrosas exceções, sobretudo fora do círculo da TV, por mais que queiram ou se esforcem com a disciplina do pensamento teórico e empírico, não exercem a crítica analítica com base no conhecimento científico estruturado em categorias e conceitos, mas inegavelmente detêm o domínio das “palavras e das coisas”, portanto, sobre o domínio e controle da informação, que em seu sentido alargado refere-se a elemento de conhecimento relativo a um sujeito “mais ou menos conhecido”,“plus ou moins connú” (cf. Fouquié &Saint-Jean, 1962).
            Karl Marx e Friedrich Engels em Libertà di Stampa e Censura (cf. o original Pressefreiheit und Zensur, 1969) percebem “estes que a liberdade de imprensa é um pré-requisito natural para a formação da opinião pública e, em seguida, um sistema democrático de relações (...). Estavam cientes deste fato ao longo da vida. A partir dos escritos iniciais de Marx, um jornalista político em 1842 para a carta de Friedrich Engels a Bebel de 1892, a defesa da liberdade de imprensa contra a censura e corre intromissão burocrática como um fio para todos os seus trabalhos” (Marx & Engels, 1970:21).
            Vejamos alguns exemplos contemporâneos. Há pouco Carlo Ginzburg no livro Occhiacci di legno - Nove riflessioni sulla distanza (1998, edição consultada, 2001) nos deu um bom exemplo - para o que nos interessa -, sobre a interpretação jornalística, nesse caso ocorrida em 1986 na Itália. O capítulo é intitulado “Um lapso do papa Wojtyla” e diz respeito à discussão sobre o pedido de perdão aos judeus pela Igreja católica assumida corajosamente quando o papa visitou uma sinagoga em Roma. A visita de João Paulo II havia sido anunciada; jornalistas do mundo inteiro esperavam no meio da multidão. O rabino-chefe, Elio Toaff, e o presidente da comunidade judaica de Roma, Giacomo Saban, recordaram a perseguição a que os judeus haviam sido submetidos por gerações a fio, em particular os judeus romanos; recordaram igualmente as humilhações, as mortes, os lutos. As palavras do papa foram: “Caros amigos e irmãos, judeus e cristãos”. No Avvenire de 8 de outubro, Gian Franco Svidercoschi tachou de “leviandade e superficialidade” o que Ginzburg escreveu sobre tal expressão com que o papa Wojtyla se dirigiu aos judeus na visita à sinagoga.
Nas palavras do papa, afirma Ginzburg, eu via um eco, que me parecia e ainda me parece óbvio, do trecho da “epístola aos Romanos” (9: 12) em que Paulo aplica a judeus e gentios convertidos ao cristianismo a profecia do Gênesis (25: 23) sobre Esaú e Jacó: “O mais velho será servo do mais moço”. Se há um texto fundador do antijudaísmo cristão, é esse. Mas depois de analisar a possibilidade de ter sido uma alusão consciente – que, naquele lugar e naquela circunstância, teria tido um sabor inoportuno, Ginzburg observou que o conjunto do discurso do papa Wojtyla excluía tal possibilidade. Isto porque, para ele Svidercoschi descreve o lapso do papa Wojtyla como um “lapso freudiano”.
O texto a que Svidercoschi alude é símbolo político polonês, um credo político-religioso escrito por Mickiewicz em italiano e polonês, datado de Roma, 29 de março de 1848: “A toda Israel, nosso irmão mais velho da igualdade (...) de todos os direitos político-civis”. Evidentemente ele foi induzido ao erro pelo título do artigo publicado em Repubblica, “O lapso freudiano do papa Wojtyla”. A conclusão que Ginzburg chega é a seguinte: Mas quem, como Svidercoschi, é jornalista, deveria saber que os títulos são inseridos na redação. Se tivesse lido menos apressadamente meu artigo, Svidercoschi teria percebido que eu mencionava isso sim, o lapso inconsciente, mas recusava a interpretá-lo, como Freud teria feito, em termos de psicologia individual.


Bibliografia geral consultada:
AGOSTINHO, Santo, A Doutrina Cristã, São Paulo: Edições Paulinas, 1991;

AQUINO, Tomás de, Summa Theologica. 2ª edição. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980-1981;

BOFF, Leonardo, A Nova Era: A Consciência Planetária. Rio de Janeiro: Record, 2007;

Idem, “Uma história épica: Irmãs negras”. In: Diário do Nordeste. Fortaleza, 23 de novembro de 2009; 

Idem, “A Sociedade Mundial da Cegueira”. In: Jornal O Povo, Fortaleza, 22.02.2010;

GINZBURG, Carlo, “Um lapso do Papa Wojtyla”. In: Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001;

Idem, “O inquisidor como antropólogo: Uma analogia e suas implicações”. In: GINZBURG, Carlo “et alii”, A Micro-História e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1991;

Idem, Miti, Emblemi, Spie – Morfologia e storia. Rorino: Einaudi Editore, 1992;

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich, Libertá di Stampa e Censura. Bologna: Guaraldi Editore, 1970;

TVARDOVSKAIA, Valentina Aleksandrovna, El Populismo Russo. México, Siglo XXI, 1972;

BRAGA, Ubiracy de Souza, “O Modelo Wittgenstein de Verdade Apodítica. Linguagem Ideal ‘versus’ Linguagem Ordinária”. In: Revista Políticas Públicas e Sociedade. Fortaleza. Ano I. n˚ 1, março de 2003;

Idem, “O Modelo Wittgenstein de Verdade Apodítica: Linguagem ideal “versus” linguagem ordinária?”. Ensaio disponível em: www.políticasuece.com.br;

FOUQUIÉ, Paul & SAINT-JEAN, A., Dictionaire de la Langue Philosophique. Paris: PUF – Presses Universitaires de France, 1962;

WEFFORT, Francisco C., Classes Populares e Política (Contribuição ao Estudo do ´Populismo`). Tese de Doutorado. F. F. L. C. H/ USP. São Paulo, 1968a; Idem, “El Populismo en la Política Brasileña”. In: Brasil Hoy. México: Siglo Veintiuno Editores, 1968b, entre outros.






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