sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Fortaleza, cidade do medo?




Fortaleza é comumente associada por moradores e visitante a imagens que reportam uma cidade sedutora e hospitaleira, capaz de acolher a todos como se fosse uma aldeia de ternura no meio de tanta violência que caracteriza os tempos atuais. Não é bem o que mostram os dados da pesquisa realizada pelo sindicato patronal das empresas do mercado imobiliário do Estado do Ceará (Secovi-CE), divulgados em primeira mão pelo jornal O Povo (Edição de 19/10/11). Nela foi elaborado, de forma inédita, o sugestivo Índice de Medo a partir de consulta nos últimos quatro trimestres a 3.600 moradores das classes “A, B, C e D” de Fortaleza com mais de 18 anos. A função do Índice é objetivar, a cada três meses, uma medida referencial da “sensação de insegurança” sentida por parte dos moradores. Apesar da inovação da pesquisa, contudo, entendo que é preciso realizar uma reflexão sobre o modo como Fortaleza é produzida como “cidade do medo” sob o cuidado de ter em mente que muitas das soluções disponíveis para combater as supostas causas dos medos criam na mesma medida os problemas que pretendem resolver.
Embora Fortaleza tenha sido elevada à condição de vila apenas no dia 13 de abril de 1726, pelo Capitão-Mor Manuel Francês, as expedições do holandês Matias Beck, no século XVII, deixaram marcas indeléveis sobre seu peculiar modo de ordenação urbana: a de ser uma cidade fortificada. É certo que o modelo de fortificação desse período era justificado em vista do perigo representado pelo inimigo externo vindo de além-mar. Apesar das semelhanças, o processo de fortificação que afeta a experiência pública do espaço urbano em Fortaleza no início do século XXI deve ser compreendido tanto numa perspectiva histórica quanto sociológica. Histórica, porque a fuga do espaço público por parte dos setores mais privilegiados obedece a uma crescente privatização das esferas da vida contemporânea. Sociológica, porque essa privatização é traduzida, em grande parte, por meio da separação física e simbólica e pelo monitoramento ostensivo do outro, classificado como desconhecido e perigoso. Em meio a esse cenário o sentimento de medo parece ser a única manifestação subjetiva possível. É o que afirma a pesquisa do Sindicato sobre os 48,7% dos fortalezenses que tem medo em se deslocar sozinhos nas ruas ou os 58,5% que hesitam em andar por áreas desconhecidas da cidade.
Estudiosos das relações entre manifestações de medo e vida urbana tem sugerido que a definição do que hoje é tido por publicamente valioso passa pelo tipo de experiência social do espaço urbano. Essa experiência se vê comprometida pelo crescimento e proliferação dos enclaves fortificados, espaços urbanos voltados para fornecer aos seus usuários principais (moradores de áreas residenciais de luxo, mas também turistas que frequentam áreas históricas “revitalizadas” e espaços urbanos de lazer) um sentido de lugar seguro e estável numa sociedade caracterizada pela rápida compressão tempo-espaço. É fácil supor que os ambientes residenciais, comerciais, de lazer e consumo se mostram tanto mais reclusos e de acesso restrito e limitado quanto mais oferecidos como mercadorias raras para a marcação de gostos e distinções.
As consequências mais imediatas dessas mudanças urbanas revelam-se na forma como as interações mais cotidianas se estruturam na cidade. Medidas de segurança, como instalações de equipamentos e câmeras para monitoramento das áreas de influência dos enclaves, segurança particular e policiamento ostensivo, combinam-se como os novos formatos da arquitetura e do urbanismo “pós-moderno”, onde predominam designers e materiais que, ao mesmo tempo em que sugerem transparência e unidade entre experiências sociais públicas e privadas, revelam formas sutis de separar e isolar sujeitos apontados como perigosos e indesejados.
Como bem observa Zygmunt Bauman (Confiança e medo na cidade) a paranóia mixofóbica que resulta do medo do encontro com o outro passa a nutrir a si mesma e age como uma profecia que não tem necessidade de confirmação já que a suposta causa da “sensação do medo” pretende ser auto-evidente ou de fácil identificação aos olhos de qualquer observador. O grande risco que essa paranóia representa para a vida pública ocorre quando é vendida como necessidade de consumo e de estilo de vida pelos discursos e práticas dos construtores dos gated communities, ou de condomínios fechados e vigiados, espaços vedados que criam e reproduzem essas necessidades, nas palavras do próprio autor.
A contrapartida da fragmentação das sociabilidades urbanas gerada pelos enclaves fortificados são as supostas ilhas de segurança e prosperidade comunitária representada pelos novos formatos de residência multifamiliar, por exemplo. Fortaleza parece reproduzir nesse sentido muito do que vem sendo feito mundo a fora. Entretanto, não custa lembrar que a opção pelos ambientes fechados e restritos produz efeitos inesperados. O maior deles é que igualdade social e uma “comunidade de interesses” não constituem automaticamente as bases para uma vida pública intensa. Aliás, muitos são os novos conflitos gerados por esses aparelhados simulacros de vida coletiva. É o que bem demonstra Teresa Caldeira (Cidade de muros) quando trata do atual padrão de segregação urbana de São Paulo onde os discursos do medo e da violência misturam-se, nas propagandas publicitárias do estilo alphaville de morar, com os supostos lugares da civilidade (pós)moderna.
A lição dada por São Paulo à Fortaleza é a de que proximidade física e distância social são variáveis comumente manipuladas e de fácil adesão. É certo que nosso cotidiano fortificado de cada dia parece contradizer muitos dos princípios democráticos, da responsabilidade pública e da civilidade. Por outro lado, o medo a que não podemos mais fugir, esse sim, deve ser o de não fragmentar ainda mais a vida e a ordem pública, tão precariamente compartilhada. É preciso conter as soluções que mais aprofundam do que resolvem a suposta causa da sensação de medo. Quando a fuga da vida pública se alia a incapacidade ou preguiça de refletir sobre as responsabilidades de todos perante os demais; quando nos tornamos prisioneiros de soluções fáceis e vendáveis é ora de refundarmos um novo pacto social, algo que só de pensar, dá medo, tendo em vista os interesses entrincheirados na cidade. Mas esse é um medo que, se superado, todos só teremos a ganhar.



Wellington Ricardo Nogueira Maciel
Curriculum Lattes:
Doutor em sociologia e autor do livro O Aeroporto e a Cidade: usos e significados do espaço urbano na Fortaleza turística, EdUECE, 2010.

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