segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Notas para compreender o ceticismo contemporâneo.


                                   Notas para compreender o ceticismo contemporâneo.


                                                                                                      Ubiracy de Souza Braga*


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Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).




 L`errore dell`intellettuale consiste nel credere che si possa sapere senza comprendere e specialmente senza sentire ed esser apassionato” (Antonio Gramsci).

            O ceticismo ou cepticismo, derivado do verbo grego σκέπτομαι, transl. sképtomai, “olhar à distância”, “examinar”, “observar” é a doutrina segundo a qual não se pode obter nenhuma certeza absoluta a respeito da verdade, o que implica numa condição intelectual de questionamento permanente e na inadmissão da existência de fenômenos metafísicos, religiosos e dogmas, o que constitui uma das únicas ideias em que o ceticismo dá-nos certeza a um ponto de vista, sendo seu próprio ponto de vista um ponto de vista, contrariando a própria ideia de não ter certeza absoluta a respeito de alguma verdade, devido ao fato do “provar que uma religião está certa” etc. ser impossível de provar. O termo originou-se a partir do nome (cf. Ginzburg, 1979)       comumente dado a uma corrente filosófica originada na Grécia Antiga.
            O ceticismo costuma simplificadamente, ser dividido em duas amplas correntes constitutivas desse ideário: a) o ceticismo filosófico - uma postura filosófica em que as pessoas escolhem examinar de forma crítica se o conhecimento e percepção que possuem são realmente verdadeiros, no sentido contemporâneo que Richard Rorty (1994) emprega, ou se alguém pode ou não dizer se possui o conhecimento absolutamente verdadeiro; b) o ceticismo dito científico - tendo em vista admitir uma postura científica e prática, em que alguém questiona a veracidade de uma alegação, e procura prová-la ou desaprová-la usando o método científico. Daí as condições e possibilidades de proximidade com Rorty, mas que não trataremos agora.
            O ceticismo filosófico originou-se a partir da filosofia grega. Uma de suas primeiras propostas foi feita por Pirro de Élis (360-275 a. C.), que viajou até a Índia numa das campanhas de Alexandre, o Grande para aprofundar seus estudos, e propôs a adoção do ceticismo “prático”. Subsequentemente, como na “Nova Academia”,  Arcesilau (315-241 a. C.) e  Carnéades (213-129 a. C.)    desenvolveram mais  perspectivas teóricas, que “refutavam concepções absolutas de verdade e mentira”. Carneades criticou as di-visões dos dogmatistas, especialmente os defensores do estoicismo, quando alega que “a certeza absoluta do conhecimento é impossível”. Sexto Empírico (200 d. C.), a maior autoridade do ceticismo grego, desenvolveu ainda mais a corrente, incorporando aspectos do empirismo em sua base para afirmar o conhecimento. Ou seja, o ceticismo filosófico é procurar saber não se contentando com a ignorância fornecida atualmente pelos meios públicos, por meio da dúvida. Opõem-se ao dogmatismo, em que é possível conhecer a verdade. Para sermos breves, o dogmatismo corresponde à atitude de todo aquele que crê que o homem tem meios para atingir a verdade não se confrontando com a dúvida e não problematizando o conhecimento. O desenvolvimento de dogmas e doutrinas tem afetado as tradições, instituições e práticas religiosas.
            Historicamente falando Πυρρωνισμός, também conhecido como “ceticismo pirrônico” (cf. Lessa, 1993; 1995a; 1995b; 1997; 2008; 2009) representa uma tradição da corrente filosófica do ceticismo fundada por Enesidemo de Cnossos no século I d. C., e registrada por Sexto Empírico no século III. Toma o seu nome de Pirro de Élis, um cético que viveu cerca 360 a 270 a. C., embora a relação entre a filosofia da escola e essa figura histórica seja pouco clara. O pirronismo tornou-se influente há alguns séculos desde o surgimento da moderna visão científica do mundo. E com a seguinte tese: “Nada pode ser conhecido, nem mesmo isto”. Os céticos pirrônicos negam assentimento a proposições não imediatamente evidentes e permanecem num estado de inquirição perpétua. Ao invés de descrer em Deus, poderes psíquicos etc., baseados na falta de evidências de tais coisas, como empiristas que são, pirrônicos reconhecem que não podemos estar certos de que evidências novas não possam aparecer no futuro, de modo que eles mantêm-se abertos em sua pesquisa. Também questionam o saber estabelecido, e veem o “dogmatismo como uma doença da mente”. Last but not least, o cientista político Renato Andrade Lessa (UFF/IUPERJ) fez imersão no ceticismo, após as decepções de sua geração com a filosofia de Louis Althusser da qual era “fã de carteirinha” no bairro carioca da Tijuca.
O ceticismo científico tem relação com o ceticismo filosófico, mas eles não são idênticos. Muitos praticantes do ceticismo científico não são adeptos do ceticismo filosófico clássico. Quando críticos de controvérsias científicas, terapias alternativas ou paranormalidades são ditos céticos, isto se refere apenas à postura cética científica adotada. O termo cético é usado atualmente para se referir a uma pessoa que tem uma posição crítica em determinada situação, geralmente por empregar princípios do pensamento crítico e métodos científicos, melhor dizendo, o ceticismo científico para verificar a validade de ideias. Os céticos veem a evidência empírica como importante, já que ela provê provavelmente o melhor modo de se determinar a validade de uma ideia. Apesar de o ceticismo envolver o uso do método científico e do pensamento crítico, isto não necessariamente significa que os céticos usem estas ferramentas constantemente.
Os céticos são frequentemente confundidos com, ou até mesmo apontados como, cínicos. Porém, o criticismo cético válido (em oposição a dúvidas arbitrárias ou subjetivas sobre uma ideia) origina-se de um exame objetivo e metodológico que geralmente é consenso entre os céticos. Note também que o cinismo é geralmente tido como um ponto de vista que mantém uma atitude negativa desnecessária acerca dos motivos humanos e da sinceridade. Apesar de as duas posições não serem mutuamente exclusivas, céticos também podem ser cínicos, cada um deles representa uma afirmação fundamentalmente diferente sobre a natureza do mundo.
De outra parte, os céticos científicos constantemente recebem também, acusações de terem a “mente fechada” ou de inibirem o progresso científico devido às suas exigências de evidências cientificamente válidas. Os céticos, por sua vez, argumentam que tais críticas são, em sua maioria, provenientes de adeptos de disciplinas pseudocientíficas, tais como homeopatia, reiki, paranormalidade e espiritualismo, cujas visões não são adotadas ou suportadas pela ciência convencional. Segundo Carl Sagan, cético e astrônomo, “você deve manter sua mente aberta, mas não tão aberta que o cérebro caia”. A necessidade de evidências cientificamente adequadas como suporte a teorias é mais evidente na área da saúde, onde utilizar uma técnica sem a avaliação científica dos seus riscos e benefícios pode levar a piora da doença, gastos financeiros desnecessários e abandono de técnicas comprovadamente eficazes. Por esse motivo, do ponto de vista positivista, no Brasil é vedado aos médicos a utilização de práticas terapêuticas não reconhecidas pela comunidade científica.
Destarte não queremos perder de vista que Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) foi um escritor e ensaísta francês, considerado por muitos como o inventor do ensaio pessoal. Nas suas obras e, mais especificamente nos seus “Ensaios”, analisou as instituições, as opiniões e os costumes, debruçando-se sobre os dogmas da sua época e tomando a generalidade da humanidade como objeto de estudo. Ipso facto é considerado um cético e humanista. Montaigne não tem um sistema. Não é um moralista nem um doutrinador. Mas não sendo moralista, não tendo um sistema de conduta, uma moral com princípios rígidos, é um pensador ético. Procura indagar o que está certo ou errado na conduta humana.
Propõe-se mais estudar pelos seus ensaios certos assuntos do que dar respostas. No fundo, Montaigne está naquele grupo de pensadores que estão a perguntar em vez de responder e é na sua incerteza em dar respostas que surge certo cepticismo em Montaigne. Como não está interessado em dar respostas apriorísticas tem certa reserva em relação a misticismos e crenças. É de notar certo alheamento em relação ao Cristianismo e às lutas de religião que se vivia em França. Embora não deixe de refletir em assuntos como a destruição das novas índias pelos Espanhóis. Ou seja, as suas reflexões visam os clássicos e a sua própria contemporaneidade. Tanto fala de um episódio de Cipião como fala de algum acontecimento do seu século como fala de qualquer seu episódio doméstico.
Um debunker é um “cético engajado no combate a charlatões e ideias que, na sua visão, são falsas e não científicas”. Alguns dos mais famosos são: James Randi, Basava Premanand, Penn e Teller e Harry Houdini. Religiosos contrários aos grupos de céticos desenganadores dizem que suas conclusões estão cheias de interesse próprio e que nada mais são que novos movimentos de cruzadas de crentes com a necessidade de assim se afirmarem. Entretanto, quando esses mesmos críticos são chamados a comprovar cientificamente suas teorias e alegações, a maioria dos religiosos refuga a qualquer tipo de discussão preferindo partir para ataques pessoais contra os céticos.
Randall James Hamilton Zwinge (Toronto, 1928), mais conhecido como James Randi ou, posteriormente, The Amazing Randi, é um mágico ilusionista e cético, conhecido por ser um combatente da pseudociência. Ele é talvez mais conhecido pelo One Million Dollar Paranormal Challenge (“Desafio Paranormal de Um Milhão de Dólares”), no qual a James Randi Educational Foundation pagará um milhão de dólares a qualquer um que demonstrar evidência de evento paranormal, sobrenatural ou de poderes ocultos, as condições para os testes precisam ser aceitas por ambas as partes. Ele também participa ocasionalmente do programa de televisão Bullshit!, apresentado pelos também mágicos e céticos Penn & Teller. Seu interesse em desbancar o paranormal vem de sua época de adolescente.
Por volta de 1975, Premanand começou a denunciar publicamente o “homem santo” indiano, Sathya Sai Baba, e agora dedica sua vida à exposição de falsos homens santos e fenômenos paranormais. Originalmente um ilusionista, Premanand utiliza suas habilidades com o objetivo de mostrar explicações naturais para as supostas capacidades sobrenaturais e milagres alegados por esses gurus e homens santos. Desde 1976 seu principal alvo é Sathya Sai Baba. Premanand foi preso em 1986 pela polícia por marchar com 500 voluntários até Puttaparthi, a cidade onde o principal ashram do guru estava localizada. No mesmo ano ele processou Sathya Sai Baba por violação do Ato de controle Dourado pela materialização de objetos em outro de Sathya Sai Baba.
O caso foi arquivado, “mas Premanand apelou baseado em que o poder espiritual não é uma defesa reconhecida pela lei”. Ele posteriormente fundou a Federação de Associações Racionalistas Indianas, que ia às vilas da Índia para educar as pessoas contra os falsos gurus e faquires que ele considerava uma fraude. Ele também era o convocador do CSICOP Indiano, um grupo cético baseado em Tamil Nadu que é afiliado ao CSICOP. Ele é o dono-editor da revista mensal “O Indiano Cético”, que “publica artigos de investigações científicas em aparentemente ocorrências paranormais com especial ênfase a casos na India”.
Descrito pela BBC como “o principal desvendador de Gurus da Índia”, Basava Premanand foi “honrado pelo governo com o mais alto premio para a promoção de valores científicos entre o público”. Penn & Teller é uma dupla de ilusionistas e comediantes norte-americanos. Em suas performances, Penn Jillette é um falastrão, enquanto que Teller geralmente não fala. Além do sucesso como ilusionistas mantendo um show regular no All Suíte Hotel and Casino em Las Vegas, tornaram-se conhecidos como debunkers e pela “defesa pública do ateísmo, ceticismo e libertarianismo” (cf. Braga, 2011). No Brasil, tornaram-se mais conhecidos graças ao programa de televisão Bullshit veiculado pelo canal FX.
Harry Houdini, nome artístico de Ehrich Weiss (1874-1926), fora um dos mais famosos escapistas e ilusionistas da História. Sua família emigrou para os Estados Unidos, quando Houdini tinha quatro anos, em 3 de julho de 1878, a bordo do navio SS Fresia. Teve uma infância muito pobre, o que o obrigou a trabalhar desde cedo. Foi perfurador de poços, fotógrafo, contorcionista, trapezista. Foi também ferreiro e nesse ofício ele aprendeu os truques que mais tarde o transformariam no maior mágico ilusionista do mundo. Certa vez, seu chefe encarregou-lhe de abrir um par de algemas cuja chave um policial perdera. Após inúmeras tentativas usando serras, Houdini teve a ideia de pinçar a fechadura para abri-la. Ele conseguiu e a maneira como a fez serviu de base para abrir todas as algemas que empregava em seus truques.
A ciência moderna é construída “sob um pé limiar”, talvez, entre o ceticismo e a credulidade. Por um lado, a ciência deve estar sempre aberta a novas ideias, desde que apoiadas em evidências científicas, mas que posteriormente devem ser comprovadas, de modo a assegurar a veracidade de seus resultados. Sempre que uma nova hipótese é formulada ou uma nova alegação é realizada, toda a chamada “comunidade científica” se mobiliza de modo a comprovar sua viabilidade teórica e prática. Como em qualquer outro plano, quanto mais incomuns forem as novas ideias e invenções, mais resistência tendem a enfrentar durante seu escrutínio por meio do método científico. Uma consequência disso é que vários cientistas através da história, ao apresentarem suas ideias, foram inicialmente recebidos com alegações de fraude por colegas que não desejavam ou não eram capazes de aceitar algo que requereria uma mudança em seus pontos de vista estabelecidos.
Em Janeiro de 1905, mais de um ano após Wilbur e Orville Wright terem feito o seu histórico primeiro vôo em Kitty Hawk, em 17 de Dezembro de 1903, a revista Scientific American publicou um artigo ridicularizando o vôo dos Wright. Com assombrosa autoridade, a revista citou como principal razão para questionar os Wright “o fato de a imprensa americana ter falhado em cobrir o vôo”. Outros a se juntarem ao movimento cético foram o New York Herald, o Exército Americano e inúmeros cientistas americanos. Somente quando o presidente Theodore Roosevelt ordenou tentativas públicas no Forte Mayers, em 1908, os irmãos Wright comprovaram suas afirmações e compeliram até os céticos mais zelosos a aceitarem “a realidade das máquinas voadoras mais pesadas que o ar”. Na verdade, os irmãos Wright foram bem sucedidos em demonstrações públicas do vôo de sua máquina cinco anos antes do vôo de reconhecimento histórico.
A maioria das invenções revolucionárias modernas, do ponto de vista da técnica e da arte, como o microscópio de corrente de tunelamento, que foi inventado em 1981, ainda encontra intenso ceticismo e até mesmo ridículo quando são anunciados pela primeira vez. Como físico Max Planck observou em seu livro “The Philosophy of Physics”, de 1936: “uma importante inovação científica raramente faz seu caminho vencendo gradualmente e convertendo seus oponentes: raramente acontece que  ´Saulo` se torne ´Paulo`. O que realmente acontece é que os seus oponentes morrem gradualmente e a geração que cresce está familiarizada com a ideia desde o início”.
O ceticismo pode, portanto, tornar-se vicioso e sua prática deve ser balanceada. É importante que o cético mantenha-se neutro, tenha consciência de sua posição e evite um ceticismo descontrolado que possa vir a transformar-se num fanatismo tecnológico. Por exemplo, membros da Sociedade da Terra Plana acreditam que o planeta Terra não é esférico, e sim plano sendo que numa revisão mais recente descobriu assemelhar-se com um disco. Outro exemplo interessante diz respeito aos boatos referentes à missão Apollo, em que uma pesquisa realizada pelo Instituto Gallup em 1999, constatou que 6% da população norte-americana ainda não acreditava que o homem houvesse pousado na Lua. Uma visão irônica sobre a resistência de se aceitar evidências, especialmente depois de se passar um longo tempo refutando-as, é apresentada pela Sociedade Memorial os Homens Nunca Voarão uma sociedade que teve como base os argumentos céticos.
Enfim, resumidamente, o ceticismo é um corrente de pensamento filosófico que defende a ideia da impossibilidade do conhecimento de qualquer verdade. Criado na Grécia Antiga por Pirro de Élis, esta filosofia rejeita qualquer tipo de dogma. De acordo com os céticos, todo conhecimento é relativo, pois depende da realidade da pessoa que o possui e das condições do objeto que está sendo analisado. Como a cultura (regras, leis, costumes, visões e mundo, crenças) muda em cada período histórico, os defensores do ceticismo acreditam ser impossível estabelecer o que é real e irreal ou correto e incorreto. Logo, os céticos defendem a ideia de assumir uma postura de neutralidade em todas as questões, não fazendo julgamentos. Assim, o cético defende a indiferença total.
Quais seriam então as dez razões para se compreender o ceticismo, a inversão é proposital. Senão vejamos: 1) “Alegações extraordinárias exigem prova extraordinária” (Carl Sagan em “O Cérebro de Broca”; 2) “Ausência de evidência não é evidência de ausência” (Carl Sagan, em “O Mundo Assombrado por Demônios”); 3) “Um ceticismo sábio é o primeiro atributo de um bom crítico” (James Russell Lowell, poeta, crítico e editor norte-americano, 1819-1891); 4) “Os grandes intelectos são céticos” (Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, 1844-1900); 5) “Ser cético não significa ser aquele que duvida, mas sim aquele que investiga e pesquisa, ao contrário daquele que afirma e que pensa que achou” (Miguel de Unamuno, filósofo e escritor espanhol, 1864-1936); 6) “É a crença, e não a descrença, que é perigosa para nossa sociedade” (George Bernard Shaw, dramaturgo e crítico irlandês, 1856-1950);
E do ponto de vista da modernidade; 7) “A ciência moderna realmente deve estimular em todos nós uma humildade perante a imensidão do inexplorado e a tolerância por hipóteses malucas”; 8) “Modern science should indeed arouse in all of us a humility before the immensity of the unexplored and a tolerance for crazy hypotheses” (Martin Gardner citado em “Psychology in today's world‎”, p. 354, de Stanley Milgram - Educational Associates (1975; 387 páginas); 9) “A maior das propriedades do homem é a mente intranquila” (Isaac Asimov, bioquímico, escritor e divulgador científico norte-americano, 1920-1992); 10) “A descoberta da verdade é impedida mais efetivamente não pela falsa aparência das coisas presentes que nos leva ao erro, e não diretamente pela fraqueza dos poderes do raciocínio, mas sim pela opinião pré-concebida, pelo preconceito” (Arthur Schopenhauer, filósofo alemão, 1788–1860).
O lugar da alma no qual se dá o jogo das oposições entre fenômenos e nôumenos é, segundo Enesidemo, a memória. A uma representação presente, pode-se opor uma representação passada, ou até, a imaginação de uma coisa futura. É a razão pela qual na prática da dúvida cética, a alma não se encontra totalmente engajada. Mais tarde, veremos Descartes, convicto da unidade do espírito humano, experimentar a dúvida como uma angústia que interessa a totalidade das faculdades. Ao contrário, com Enesidemo ou Sexto Empírico, é feita uma separação entre a faculdade sensitiva e a faculdade de imaginar ou de conceber, embora a dúvida possa permanecer a expressão feliz e tranquila de uma imaginação e de um entendimento suspensos ou, se se preferir, dogmaticamente inativos.
Entretanto, para chegar a este silêncio do entendimento colocado na impossibilidade de se pronunciar sobre a natureza em si do objeto empírico, é preciso poder dispor de remédios apropriados e, sobretudo, cuidadosamente dosados a fim de não ocasionar, pela refutação de uma tese, a adesão do espírito a uma tese contrária. É a razão pela qual os céticos inventam, com Agripa, e praticam, com Sexto Empírico, uma nova lógica. Enquanto que, nas escolas gregas de filosofia, a lógica ou a dialética cumprem uma função defensiva contra os adversários do sistema, aqui a dialética é o instrumento de uma terapêutica destinada a dividir a alma em duas, ou seja, a impedir o entendimento de dogmatizar, concedendo plena confiança aos sentidos e à vida.
Os novos céticos imaginaram cinco argumentos. O primeiro é o da discordância. Ele consiste nem reconhecer a oposição entre as opiniões e as teses; assim; na frase: “A neve é branca, mas a água é escura” é impossível saber qual é essencialmente a cor da água, e convém suspender o juízo quanto a este ponto. O segundo argumento é o da regressão ao infinito. Ele consiste em considerar que a prova a que o dogmático quiser recorrer, remete a outra prova, e assim ao infinito; por exemplo: pretender dar uma definição absoluta de qualquer coisa expõe quem formula esta pretensão a uma regressão ao infinito, já que o que define requer que ele mesmo seja definido, e assim por diante. O terceiro argumento é o da relação. Ele consiste em constatar que não somente os objetos são relativos entre si, mas que toda representação é sempre uma representação para um sujeito e relativa a ele. Este argumento retoma o da relação tal como Enesidemo o expressara. Esquerda e direita, pai e filho são relativos. Significante e significado são relativos. Tudo é relativo, o que exclui a universalidade.
A própria fórmula: “tudo é relativo” deve ser entendida no sentido de “tudo nos aparece ou nos é representado conforme um fenômeno relativo”. Este argumento manifesta a herança filosófica de Protágoras. Ele estabelece um relativismo universal. Ele denuncia a pretensão do entendimento de se referir a uma certeza absoluta, ao conhecimento do real. O quarto argumento é o da hipótese. Quando os dogmáticos querem escapar do regresso ao infinito, eles colocam no início da cadeia de razões algo indemonstrável do qual convém admitir o caráter hipotético. Isto é o que fazem os geômetras que procedem por axiomas, definições e postulados. Mas o cético recusa-se a aceitar o que eles pedem e esquecer o caráter hipotético dos princípios nos quais a dedução se fundamenta. Assim, a geometria euclidiana ou a geometria estóica são denunciadas como sistemas hipotéticos: a outras hipóteses corresponderiam outras geometrias. O último argumento é o do dialelo ou círculo vicioso.
Quando a gente pretende fundamentar circularmente uma prova sobre uma consequência daquilo que a gente procura demonstrar, a gente cai num círculo vicioso. O silogismo aristotélico que pretende deduzir da maior universal “todo homem é animal” a conclusão que “Sócrates é animal” cai no círculo vicioso. Pois a proposição: “todo homem é animal” é na realidade, fundada na indução que inclui todos os homens conhecidos: Sócrates, Platão, Díon. Consequentemente, é a conclusão, “Sócrates é animal”, que serve para fundamentar a hipótese “todo homem é animal” de tal modo que a gente cai num círculo vicioso. Até estes últimos anos, alguns eruditos ficaram exasperados pela multiplicação dos argumentos que Sexto Empírico propôs, enquanto que um espirito tão fino como o de Henri Estienne encontrou neles um grande deleite. Com efeito, é preciso ver bem que este estoque de argumentos dialéticos reuniu uma farmacopeia extremamente diversificada, comportando analgésicos, calmantes e tranquilizantes da alma, objetos necessários para o cientismo da época, isto é, a pretensão dogmática de tudo conhecer.
 Ora, da mesma forma como observamos a propósito do pirronismo, quando, longe de derrubar toda ciência a dúvida é solidária de um estado dado da ciência, constatamos também em Sexto Empírico uma evolução particularmente significativa. Seu último tratado, Contra os astrólogos, não é dirigido contra a astronomia experimental, mas contra o charlatanismo dos Caldeus. Ele admite a utilidade e a legitimidade de uma astronomia experimental que permita regular os trabalhos da agricultura e prever as cheias dos rios. Vemo-lo discutir os problemas postos para a medida do tempo por meio de um relógio d’água e refletir sobre o ajuste das simultaneidades. Enfim, o empirismo resulta em pesquisas comparáveis aos futuros métodos indutivos de Stuart Mill e coloca a possibilidade de edificar uma ciência não dogmática, que seria experimental. Ainda que isso seja dito muito claramente pelos textos céticos, essa afirmação pode, entretanto, surpreender. Ela decorre do fato que em matéria de ceticismo o contra-senso parece ter conseguido mais força que a própria verdade histórica, mais exatamente, é o próprio contra-senso que é histórico a ponto de se impor contra a letra dos textos. Consequentemente, é a este aspecto tradicional do ceticismo que convém agora voltarmos nossa atenção.
Bibliografia Geral Consultada.
CAMPOS, Regina Salgado, Ceticismo e responsabilidade: Gide e Montaigne na obra crítica de Sérgio Milliet. São Paulo: Annablume, 1996; SPINELLI, Miguel, Helenização e Recriação de Sentidos. A Filosofia na época da expansão do Cristianismo - Séculos, II, III e IV. Porto Alegre: Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2003; GINZBURG, Carlo e PONI, Carlo, “Il nome e il come: scambi ineguale e mercato storiografico”. In: Quaderni Storici, n˚ 40, 1979; RORTY, Richard, A Filosofia e o Espelho da Natureza. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994; GRAMSCI, Antonio, Quaderni del carcere, Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce, p. 210; Idem, Gli intellettuali e l`organizazione della cultura. Torino: Ed. Einaudi, 1975; PORCHAT PEREIRA, Oswaldo, “O Ceticismo Pirrônico e os Problemas Filosóficos”. Em: Cadernos História e Filosofia da Ciência. Campinas, v. 6, 1996; LESSA, Renato de Andrade, “Veneno Pirrônico: Ceticismo, Desconstrução Filosófica e Imagem do Mundo social”. In: Arché, v. 5, 1993; Idem, “That Deadly Pyrrhonic Poison: A tradição cética e o seu legado para uma teoria política moderna”. In: Antropolítica - Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política, v. 1, 1995a; Idem, “Ceticismo e Liberalismo: Reflexões sobre uma possível afinidade eletiva”. In: Revista de Sociologia e Política, v. 3, 1995b; Idem, Veneno pirrônico: ensaios sobre o ceticismo. Tese de doutorado em Ciência Política. IUPERJ - Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1997; 239 páginas; Idem, “Revisitando Faoro: o longínquo pesadelo brasileiro”. In: Travessias. Rio de Janeiro, v. 2/3, 2006a; Idem, “David Hume em Auschwitz: notas sobre o trauma e a supressão das crenças ordinárias”. In: Revista Brasileira de Psicanálise, v. 39, 2006b; Idem, “La fabbrica delle credenze: lo scetticismo come filosofia del mondo umano”. In: IRIDE - Filosofia e Discussione Publica, v. 55, 2008; Idem, “Some Ways of scepticism: now and then”. In: IRIS - European Journal of Philosophy and Public Debate, v. 1, 2009; WEILLER, Maurice, “Para conhecer o pensamento de Montaigne”. In: Ensaios de Montaigne, UnB/Hucitec, Brasília, 2. ed. Vol. III, 1987, p. 3-135; EVA, Luiz Antonio Alves, A figura do filósofo: ceticismo e subjetividade em Montaigne. São Paulo: Edições Loyola, 2007 entre outros.

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