terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

TRAJETÓRIAS E UMA PEDRA NOS CAMINHOS: o poder destrutivo do capital.






Saboreio hoje a alternância da chuva e do sol. E isso simboliza meu estado de espírito neste momento de turbulência: minhas lágrimas caem, como a chuva, e minha força para lutar renasce a cada instante como o sol que quer vencer. Amo o nosso tempo "bonito pra chover". E vejo isso da minha janela, que ao abrir-se dá-me aos olhos a vista da serra de Maranguape. Vejo-a agora e choro. Não sei até quando poderei vê-la. Hoje, nesse tempo de chuva, ela se descortina, e quer se mostrar bem verde e logo se recobre. O movimento de nuvens sobre seus contornos descortina em mim memórias de trajetos. Rupturas. Retomadas.


Cheguei à cidade de Fortaleza ao final da década de 80. Vim com meus pais e irmãos. Meus pais são ex-agricultores, filhos de agricultores que construiram a vida em nossos secos e paradoxalmente férteis sertões. Com muita peleja, mudaram-se para a cidade, onde se tornaram comerciantes. De modo que nossa vinda para Fortaleza não se deu como uma fuga da seca. Fomos daquele tipo de migrante que parte em busca de acesso a melhores serviços, como a educação. Com o patrimônio que tínhamos, sonhamos com uma vida de trabalho e razoável conforto na Fortaleza, a capital.


De certo modo, nos iludimos. Porque não sabíamos ainda que a possibilidade de concretizar nossos sonhos ia deparar-se inúmeras vezes com os golpes da maldita política que se alia ao capital. E por falar em capital, vindo a Fortaleza, vendemos nossos imóveis do interior, no sertão central. E vivemos da renda do que colhemos, até o momento de nos instalarmos na capital, pagamos aluguel, escola, supermercado e tudo o mais que uma família de posse modesta pode acessar... até percebermos que não poderíamos mais esperar sem nos reestabelecermos no comércio.


De tanto procurar e o tempo passar, o que nos restou de recurso econômico nos permitiu comprar uma casa em Bonsucesso, cerca de 200 metros à margem direita do rio Maranguapinho. Era basicamente um terreno, com pouca área construída, precária, uma casa e um ponto comercial muito modestos, o que até então não conhecíamos. Nunca havíamos comprado casa na periferia: este foi nosso primeiro estranhamento. Mas logo nos acostumamos e encontramos por aqui vizinhos muito queridos, solidários; sentamos juntos nas calçadas e vivemos em nosso quarteirão com laços de vizinhança que mais parecem de parentesco. Quando já estávamos nos socializando nesse novo ambiente, veio um golpe quase fatal: Fernado Collor assumiu e tomou o que tínhamos na poupança para abrirmos novamente o comércio, uma bodega.


Bem, parentes nos ajudaram e tivemos muita força e vontade para trabalhar e voltar a crescer. Meus pais, em todo o desânimo, jamais abandonaram o valor e o propósito de investir na educação e formação dos filhos. Dois deles, minha irmã e eu, chegaram à Universidade. Fomos trabalhando, ajudando nossos pais e sendo ajudados por eles; mesmo na turbulência, nossos laços solidários jamais se romperam. E fomos juntos, construindo nossa casa, durante 23 anos. E hoje ela é uma das melhores que há aqui no quarteirão onde moramos, na rua Vital Brasil.


Acontece que, mais uma vez, o golpe sujo da política que se enlaça ao capital nos ataca: o governo Cid Gomes quer nos tomar a casa que construimos com muito suor e sacrifício e nela temos o prazer de morar, oferecendo uma indenização miserável que, não fosse a força e o apoio que estamos recebendo para reverter esse processo, estaríamos em desespero, sem saber como recomeçar tudo, sem o teto sob o qual nos abrigamos e vimos nossa família crescer com a chegada do nosso amado Gabriel. Ele é uma criança de 5 anos, que já sofre com o que estamos vivendo. Vive agora a falar em justiça, justiça, sem saber exatamente o que diz. Meus pais, com mais de setenta anos, estão adoecendo, passam mal, como ocorreu ontem na chamada "negociação" com a agente do governo.


Até quando, povo de Fortaleza, suportaremos isso? Várias famílias vizinhas a minha casa estão passando por isso. Até quando e aonde vai essa higienização social, que retira das comunidades o direito à cidade? Sim, eu tenho o direito à minha janela, à minha vista para a serra de Maranguape e isso não tem preço! Nas turbulências que minha família e eu já enfrentamos nesta cidade, essa vista para o verde foi um símbolo que cultivei ao longo dos anos, para significar o meu pertencimento a esta cidade, que acolhe, mas que segrega; segrega, porque alimenta a força avassaladora do capital, em processos de especulação imobiliária, pondo em cena uma força que só destrói as coisas belas.


28/02/2012


George Paulino (Antropólogo, Professor Adjunto do Curso de Ciências Sociais da UFC)




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