quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

A filosofia em Ferris Bueller


Despretensioso e divertido, o filme “Curtindo a vida adoidado”, de John Hugues, consegue relacionar Nietzsche, os anos 1980 e a geração pós-baby boomer norte-americana

Alexandre Enrique Leitão

Curtindo a vida adoidado (Ferris Bueller’s Day Off)
EUA, 1986

Ferris Bueller interpretado por Matthew Broderick
Ferris Bueller interpretado por Matthew Broderick
Not that I condone fascism, or any -ism for that matter. -Ism's in my opinion are not good. A person should not believe in an -ism, he should believe in himself
Ferris Bueller, Curtindo a vida adoidado

Em 1990, a então primeira-dama dos Estados Unidos, Barbara Bush, dirigia-se a uma plateia de estudantes da Universidade Wellesley, em Massachusetts, quando resolveu expor aos presentes uma interessante visão filosófica sobre o mundo: “Encontrem a alegria na vida, porque como disse Ferris Bueller em seu dia de curtir a vida adoidado (on his day off –no original), ‘A vida se move muito rápido; se você não parar e olhar em volta de vez em quando, você pode perdê-la!’”
A esposa do presidente George Bush [pai] se referia à visão de mundo de Ferris Bueller, protagonista daquele que é considerado um dos maiores filmes adolescentes já produzidos: Curtindo a vida adoidado. Com uma estrutura narrativa simples, a obra nos leva ao dia em que Ferris, sua namorada Sloane e o neurótico amigo Cameron, decidem matar aula e sair para farrear nas ruas de Chicago.
O diretor John Hugues (1950-2009) vinha de uma série de obras-primas sobre a vida nos colégios americanos, já tendo rodadoMulher nota milO clube dos cinco e Gatinhas e gatões, além de ter escrito A garota de rosa shocking. Em todos os seus projetos, o cineasta buscou retratar a escola como um espaço no qual afloram os aspectos mais negativos do contrato social. Em A garota de rosa shocking, por exemplo, o colégio é um microcosmo exacerbado de tensões sociais, em que um singelo namoro entre uma garota pobre e um rapaz rico é alvo de maledicências e complôs. Em O clube dos cinco, cinco personagens, cada qual representativo de um estereótipo do colegial (o nerd, o encrenqueiro, a patricinha, o esportista e a maluca) são colocados numa sala de detenção ao longo de uma manhã. Lá descobrem uma profunda amizade e decidem lutar contra o preconceito de uma “sociedade” que quer separá-los em grupos e tribos isoladas.
Curtindo a vida adoidado talvez seja a mais iconoclasta das obras do diretor. Quase nada acontece no colégio e também este não parece representar qualquer obstáculo ou problema para o personagem. Ferris difere de todos os demais protagonistas masculinos escritos por Hughes, na medida em que sequer tenciona alterar ou questionar as regras sociais. Mas esse comportamento, longe de revelar certo conservadorismo da parte de Ferris, parece atentar para uma percepção libertária da realidade. As regras sociais não precisam ser alteradas para o nosso anti-herói porque bastaria quebrá-las. Ferris não passa por dilemas de consciência em nenhum momento da história. Ele não liga para a escola, para os pais ou qualquer sombra de responsabilidade, contrapondo-se ao amigo Cameron, constantemente preocupado com o que os outros (sociedade, professores, pais) irão pensar de suas atitudes.

Ser amoral
Ferris constituiria, portanto, a epítome do ser amoral. Em verdade, no decorrer de suas aventuras, o personagem interpretado por Matthew Broderick não prejudica ninguém objetivamente. Mas a essência de seu caráter reside na não-aquiescência das regras mínimas de conduta moral: ele finge estar gravemente doente, causando consternação em seus pais; desrespeita as regras mais fundamentais do colégio; causa, incidentalmente, a marginalização de sua irmã (preterida pelo fato de Ferris ser o centro das atenções), levando-a a um desespero atroz; e ironiza a validade intrínseca do próprio processo educativo. Essa última afirmação se sustenta no monólogo inicial do personagem, quando o mesmo esclarece aos expectadores que haverá um teste, no mesmo dia em que ele pretende matar aula. O tema da prova será 'Socialismo Europeu', o que leva Bueller a questionar: “Por que eu preciso estudar isso? Eu não sou europeu, eu não pretendo ir para a Europa. E daí que eles são socialistas? Eles poderiam ser fascistas-anarquistas que isso ainda não mudaria o fato de que eu não tenho um carro.”
Ferris, no entanto, não apenas menospreza as regras de conduta oficiais, aquelas emanadas pelo mundo dos adultos, como também negligencia as próprias “leis” do colégio. No decorrer do filme, entendemos que ele é amado por todas as tribos, sem integrar nenhuma delas. Mais do que isso, seu desprezo acaba por englobar o esforço coletivo dos alunos. O que Hugues tenta fazer é retratar a juventude norte-americana dos anos 80, como enunciado já nas primeiras cenas. Ao descobrirmos que ele forjou sua doença, logo somos induzidos a ver a imagem de um aparelho de TV, convenientemente sintonizado no canal hip da época: a MTV. O quarto do protagonista é repleto de pôsteres de bandas de rock da década, e somos inclusive apresentados a uma tomada de Ferris tomando banho, quando decide fazer um topete moicano com o shampoo, emulando os punks de então. Diferente da denúncia do consumismo, tão corrente nas críticas feitas à juventude dos anos Reagan, Hugues encontra na falta de perspectiva, limites e preocupação social, aquilo que seria a fonte de seus problemas e a poesia máxima de uma geração. Se, por um lado, os garotos e garotas dos anos 80, diferente de seus pais, não querem mudar o mundo, eles pelo menos querem aproveitá-lo ao máximo. Tratava-se a geração pós-baby boomer.

Ferris e o super-homem
Nascidos após a Segunda Guerra Mundial, os baby boomers foram os jovens do ciclo de manifestações de 1968, os que protestaram contra a Guerra do Vietnã, as ditaduras militares sul-americanas, e a linha dura soviética, em Praga. A eles coube o mérito de popularizarem, quando não de inventarem, o rock’n roll, de capitanear a revolução sexual e de inaugurar novas bandeiras políticas, como o direito das minorias, o desarmamento nuclear e a defesa do meio ambiente. Para Hugues, os filhos daqueles jovens cabeludos, que gritavam palavras de ordem em direção à Casa Branca, seriam exponencialmente mais subversivos. E nesse contexto, Ferris carregaria em si a quintessência da despreocupação juvenil, beirando a figura do super-homem de Nietzsche. Apresentado em seu trabalho Assim falou Zaratustra (publicado pela primeira vez em 1888), o super-homem seria o estágio mais avançado do indivíduo humano. Aquele que rejeita todos os princípios morais, que despreza a religião, os valores e a ciência. Para Nietzsche, o super-homem representaria o apogeu da liberdade, e a negação daquilo que seus contemporâneos viam como o progresso da espécie humana.
Não se trata aqui de sugerir que Hugues decidiu adaptar Assim falou Zaratustra para as telas de cinema, transformando a obra de filosofia em um filme para adolescentes, mas de identificar certos paralelos que ecoam na personalidade de Ferris. Vejamos seu amigo Cameron. Desde o início da película o jovem se configura na antítese do protagonista, sendo refém de uma hipocondria crônica e do medo de que seu pai descubra que ele afanou seu carro. Ao término do filme, ele e Ferris, por acidente, acabam jogando a Ferrari de um precipício.
A curva do personagem de Cameron está então completa. Seguindo todas as lições que lhe foram passadas por Ferris no decorrer do dia, o personagem não decide buscar a “salvação” por meio da consciência (atentando para o fato de que seus problemas são, em realidade, ínfimos, se comparados com o de milhões de outros jovens no mundo); ou mesmo buscar o respeito de seu pai por meio de um diálogo aberto e sincero. Ao final, Cameron vence o remorso, não sentindo qualquer culpa pelo que fez ao carro de seu pai. Chega a ser sugerido que ele e o pai “terão uma boa conversa mais tarde”, porém, o mais importante já foi atingido: tal qual Ferris, Cameron está também livre das amarras morais que o prendiam.
O próprio antagonista do filme, o diretor da escola Ed Rooney, carregaria em si a defesa intransigente da ordem, odiando o personagem de Ferris não por ele representar um risco à escola, mas por se recusar a seguir as regras sociais impostas sobre os alunos. O fato de Rooney continuamente perder Ferris de vista, enquanto o procura pelas ruas da metrópole, atesta para o absoluto abismo geracional dos anos 80: Rooney, um baby boomer, deduz que Ferris estará no fliperama com outros garotos. Chegando lá, cutuca o ombro de alguém de cabelo curto e jaqueta e dizendo “Agora eu te peguei!”. Para sua surpresa não só não é Ferris Bueller (que estava em um estádio de baseball) como a pessoa que ele cutucou era uma garota.
A obsessão do diretor para com Ferris se centra no fato daquele não comportar-se à ordem ideal, em que os alunos têm de ir para a escola, sem importar se eles estão gostando ou não de estar ali. Rooney segue as regras sociais, e é por isso que nunca conseguirá, de acordo com o filme, pôr as mãos em Bueller. Tamanha é a admiração que lhe é posta pelos colegas de classe, não só por isso, mas também por acharem que ele se encontra gravemente doente, que no decorrer da trama vemos o colégio, e depois a cidade, ser tomada por uma campanha publicitária instantânea (aquilo que nos anos 2000 chamaríamos de marketing viral) centrada na frase Save Ferris (Salvem Ferris). Nosso super-homem, entretanto, despreza mobilizações de qualquer tipo, como explicitado na frase que abre esta crítica, não dando nenhuma atenção ao carinho e admiração que lhe são conferidos pela massa. Na sequência final, acompanhamos Rooney, derrotado e maltrapilho, mancando até o ônibus escolar, seu único meio de transporte para a escola, onde o diretor lê na capa do caderno de uma criança a frase Save Ferris [salve Ferris]. Quem se dispõe a assistir ao filme até o fim dos créditos tem outra surpresa: Bueller aparece, quebrando mais uma vez aquilo que na linguagem cinematográfica se denomina “a quarta parede”. Ele olha diretamente para a câmera, ri da plateia e diz: “Vocês ainda estão aqui? Acabou! Vão pra casa!”.
Cabe aqui concluir com a reação subsequente à declaração de Barbara Bush na Universidade Wellesley. Após citar a filosofia de Bueller, o auditório irrompeu em aplausos, ao que a primeira-dama respondeu jocosamente “Eu não vou dizer ao George que vocês bateram palmas mais pelo Ferris do que por ele.” E Bueller, tal qual Zaratustra, no último capítulo da obra de Nietzsche, anuncia: “Esta é a minha alvorada; começa o meu dia: sobe, pois, sobre, Grande Meio-dia!”


Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/cine-historia/a-filosofia-de-ferris-bueller


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