quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Os três suicídios de Durkheim e a morte da sociedade no caso Kaiowas

Os três suicídios de Durkheim e a morte da sociedade no caso Kaiowas



Escrita em 1897, a obra O Suicídio é um clássico da sociologia. Até hoje ela é lida por estudantes e pesquisadores das ciências humanas como exemplar singular de fundamentação empírica na análise da sociedade. Establet (2009) aponta que trabalhos de Durkheim relacionados às esferas do trabalho e da religião não foram tão utilizados quanto O Suicídio. Muito pelo contrário, algumas tabelas e mapas usados em obras sobre religião, mais lembram os mapas em O Suicídio do que, por exemplo, As Formas Elementares da Vida Religiosa. Neste texto, faremos uma explicação sucinta sobre as três formas de suicídio caracterizadas por Émile Durkheim, e um breve comentário relacionado ao caso dos índios Kaiowas.

Embora acreditemos que o fenômeno comportamental do suicídio esteja ligado muito mais a ordens individuais do que coletivas, sobretudo por se tratar, na grande maioria dos casos, de acontecimentos isolados, Durkheim defende que as causas destes fatos são gestadas na e pela sociedade. O autor define suicídio como o ato praticado pelo indivíduo com o intuito de desfazer-se de sua vida, sendo que o objetivo final deve ser conscientemente expressado pelo causador do ato. Ou seja, o suicida deve saber necessariamente o resultado final que ele mesmo está praticando independente da participação de outros. Durkheim divide o suicídio em três tipos: egoísta, altruísta e anômico.

suicídio egoísta é aquele cujos interesses do indivíduo estão acima da sociedade. Isto acontece, segundo o sociólogo, especialmente em sociedades “superiores”, mas com determinadas carências de integração entre sociedade e indivíduo – é preciso salientar aqui que Durkheim chama de “superiores” as sociedades ocidentais modernas em contraposição às sociedades “primitivas”, tribais ou indígenas. Durkheim diz que o homem é um ser duplo, possui uma personalidade individual e uma coletiva, esta última representa um padrão comum entre todos os indivíduos. Quando a sociedade, por alguma falha, não consegue penetrar seus valores coletivos de pertencimento e de existência no indivíduo, este pode causar sua própria morte caso algo relacionado apenas à sua vida particular tenha originado uma decepção, uma desilusão, uma descrença; tendo em vista que os valores individuais são, nesta situação, maiores do que o sentido de existência ligado ao coletivo.


Se o baixo grau de integração entre sociedade e indivíduo pode acarretar o suicídio egoísta, o oposto, quer dizer, o grau acentuado de integração entre sociedade e indivíduo, pode desencadear o suicídio altruísta. Neste caso, o suicida não encontra valores em sua existência individual para continuar vivo, pois os valores da sociedade estão muito acima dos pessoais. Este fenômeno ocorre com maior freqüência nas sociedades “inferiores”, onde existe uma integração demasiada, sobretudo demonstrada pela religião (crença, rituais comuns) que dá o significado de existência para os membros que compõem a comunidade. Durkheim cita como exemplo o suicídio da mulher após a morte do marido. Primeiro, os indivíduos são tratados como membros, comobraços de um corpo do qual não teriam existência fora dele. A mulher, em alguns casos, é somente uma extensão do marido, portanto, não há mais sentido que ela viva após a morte do esposo. Outro exemplo ilustrativo é o suicídio provocado depois da morte de um líder religioso que norteava a direção de existência dos seguidores, deste modo, é preferível acompanhar o mestre no além-túmulo de que viver uma vida sem direção. Portanto, o suicídio altruísta caracteriza-se pelo fato de existir algo maior que o indivíduo, fazendo com que, de acordo com o acontecimento, o sentido de continuar existindo não esteja mais nesta vida.

O último tipo de suicídio descrito por Durkheim é chamado de anômico. Entende-se por anomia umafrouxamento nos laços sociais, mas diferentemente do fator individual, que caracteriza o suicídio egoísta, este tem a causa na própria sociedade. Temos assim, épocas de crises econômicas densas e abruptas, que alteram de maneira significativa os valores sociais do coletivo e afetam com relevância o cotidiano do indivíduo e causam o suicídio anômico. Durkheim explica que o suicídio anômico é causado quando o indivíduo não reconhece mais sua função e utilidade em uma sociedade por causa de uma transformação gestada por ela própria, que suprime os valores que davam sentido a existência individual dos membros em integração nesse organismo. Outro fator, em sociedades avançadas, é quando o indivíduo possui um padrão de vida econômica muito alta, e então, não reconhece seus limites, não consegue satisfazer-se com coisas simples e sempre aparenta descontentamento.

Pitacos safados!

Acredito que a obra de Durkheim ainda serve para nos ajudar a explicar os suicídios na contemporaneidade (embora sua pesquisa seja direcionada para populações específicas num recorte temporal igualmente particular). Entretanto, é necessário expandir esses recortes provisórios (de três tipos) e talvez entender a relação entre eles. A distância de uma pessoa às demais parece explicar um tipo de suicídio. Que tipo é esse? Acredito que esteja próximo do egoísta e do anômico. Nos países nórdicos como Finlândia, Islândia, Noruega e Dinamarca os suicídios são recorrentes. População diminuta e frio intenso fazem com que muitas pessoas se isolem no interior dos seus quartos, interagindo com o mundo virtual e se esquecendo do social. Opa! Mas independente das condições climáticas e demográficas essa parece ser uma situação global na contemporaneidade. Só que, diferentemente dos países nórdicos, os suicídios não tem aumentado por aqui. Não, não. Preferimos nos refugiar em clínicas psicológicas, em centros terapêuticos e em remédios e drogas do prazer instantâneo do que enfrentarmos com coragem o ato mais livre da vida, segundo Sêneca, ou a "linha de fuga" quando não há mais linha de fuga, como fez Deleuze.


Durkheim ainda se mostra atual para explicar por que o índice de suicídio é proporcionalmente maior entre os ricos e a classe média do que entre os pobres. É porque o social faz mais sentido para os pobres. O acreditar em algo. E mais. Lutar por algo na vida, aliás, lutar pela própria vida, pela sobrevivência mais do que as demais classes. Talvez por estarem menos “individualizados” e correlativamente menos sozinhos do que nós, os burgueses sem religião. Mas Durkheim é insuficiente para esclarecer a alta taxa de suicídios dos vestibulandos coreanos. É egoísta por colocar seus valores individuais profissionais a frente dos demais? Ou é altruísta por que o peso do olhar dos outros (da sociedade) sobre o “fracassado”, que não conseguiu a vaga, é pesado demais para suportar? Ou é anômico por que a única utilidade de respeito que a sociedade atribui só pode ser desenvolvida por um profissional graduado em uma boa universidade? Em vez de separar esquematicamente como o mestre positivista fez, prefiro entender um entrecruzamento de fatores onde seria impossível dissociar um de outro. A meu ver, o egoísta não é o oposto do altruísta, mas se complementam e não podem ser compreendidos fora de uma dinâmica de transformação da sociedade. O “ego” (assim como o “eu”) é uma construção social. Fora de um social que torna possível sua construção e sua diferenciação de outros “eus” ele simplesmente inexiste. 


Por outro lado, o suicídio dos índios kaiowas, que ganhou repercussão nas redes sociais essa semana, possui algum grau de similaridade com o suicídio anômico. Estes suicídios já acontecem há algum tempo. Os motivos são diversos, mas todos eles parecem relacionados com a penetração da cultura ocidental nas aldeias, mexendo de maneira significativa com o imaginário social dos índios que, convenhamos, já não são mais tão índios. Estão sim, contaminados pelos nossos valores e maneiras de pensar o mundo. Inclusive, já recorrem a meios escritos para comunicarem a respeito de si, como pudemos ver na carta que está rodando na grande rede (que fomos “fisgados”). O sentido de pertencimento a uma determinada comunidade que, por sua vez, tem uma relação bastante particular com a terra, carregada por umanoção tanto material quanto simbólica, tem se fragmentado cada vez mais que a cultura do homem-branco adentra a área de preservação. Área essa delimitada, pelo “bondoso” homem-branco, para os índios morarem. Que disparate! Queremos que os indígenas reconheçam um conceito que nós ocidentais inventamos, o defronteira. Quando, na verdade, nem nós reconhecemos ou respeitamos esse conceito, já que invadimos o território de homens-brancos e de indígenas. Quem são os primitivos? Podem até ser eles, que não inventaram o avião, o celular, a Internet ou o anticoncepcional, mas os hipócritas somos nós mesmos. Invencíveis na arte de dominar a ciência técnica, mestres em criar esquemas para enganar a nós mesmos, porém mais idiotas ainda na arte de (des)respeitar os conceitos que nós mesmos inventamos.

Sinceramente, vejo as manifestações nas redes sociais como mais um reflexo da nossa hipocrisia, da nossa arrogância e do nosso cinismo. Sim, isso mesmo. Se os índios estão desta maneira é porque nós somos os responsáveis. Nossa população aumenta e a deles diminui. Dizemos que precisamos de mais espaço para plantar, produzir e extrair matérias primas para fabricarmos produtos e alimentos (in)dispensáveis para a vida moderna. Então, vamos fazer controle de natalidade? “Ah, mas isso é atentar contra a espontaneidade da vida”, dirão os republicanos. “Isso é querer impor uma coerção a liberdade dos humanos”, dirão os democratas. “Isso é confiar demais que a ciência pode governar a sociedade”, dirão os pós-modernos. “Isso vai envelhecer a população, reduzir a mão-de-obra e falir a previdência social”, dirão os economistas de botequim. Então, vamos fretar dez ônibus e irmos à Brasília pressionar o governo para criar uma lei de proteção indígena (como se isso já não existisse)? “Isso não adianta, ‘eles’ só sabem roubar”, dirá o cidadão comum, que mesmo assim continua votando “neles”. “Não posso, tenho que trabalhar”, dirá o trabalhador. “Não posso, tenho que estudar”, dirá o estudante. “Não posso, tenho que entregar um projeto...” “Tenho que assistir o Coringão em Tóquio...” As desculpas só aumentarão. Ok, então o que podemos fazer? “Ah, vamos compartilhar a imagem deles nofacebook”. Eu sei que podemos fazer muito mais que isso. Mas será mesmo que queremos de verdade?

Acho que é impossível nossa sociedade cometer um suicídio coletivo como os Kaiowas mencionaram na carta, primeiro porque não temos mais “coletivo”, segundo porque já estamos mortos.


Referências:
DURKHEIM, E. Suicídio: definição do problema; suicídio egoísta; suicídio altruísta; suicídio anômico. In:______.Émile Durkheim: sociologia. Organizador José Albertino Rodrigues. São Paulo: Ática, 1981, p. 103-122.
ESTABLET, Roger. A atualidade de 'O Suicídio'. In: MASSELLA, Alexandre Braga (org.). Durkheim: 150 anos. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009, p. 119-129.


Letra da música “Kaiowas” da banda Sepultura:

This song is inspired by
A brazilian indian tribe called "Kaiowas"
Who live in the rain forest
They committed mass suicide
As a protest against the government
Who was trying to take away their land beliefs


Link da carta dos Guarani-Kaiowa:
A melhor matéria que li até agora sobre o tema:


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