quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

12 Anos de Escravidão: ajustando o foco das lentes.

                              
                                                                                    Ubiracy de Souza Braga*        
                                  

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* Sociólogo (UFF), cientista político (UFRJ) e doutor em ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará.





                                  “Eu sou um homem livre. E você não tem o direito de me deter”.        


   
            O filme “12 Anos de Escravidão” (“12 Years a Slave”) do diretor inglês Steve  McQueen tem como escopo a “saga de Northup”, um drama universal, na sua relação social de poder e dominação e atemporal, nos seus aspectos dinâmicos na sociedade contemporânea: a) como a luta pelos direitos civis dos negros nos EUA e, b) a eleição à presidência do negro Barack Obama, quanto em: c) àqueles aspectos que permanecem diacrônicos como o racismo. Com o vigor narrativo e o apuro visual que exibiu em seus dois longas-metragens anteriores, “Fome” (2008) e “Shame” (2011), McQueen, artista plástico por formação, fez “12 Anos de Escravidão” ser reconhecido por historiadores sociais e ativistas como aquele que mais fielmente reproduz o cenário de degradação moral, desumanização e violência física impostas pelo sistema escravagista norte-americano. Solomon Northup foi protagonista de uma saga absurdamente trágica em seu minucioso relato na autobiografia (1853) visto na obra de ficção. Temos um advogado opositor da escravatura (Brad Pitt) que luta pela liberdade desse homem.       
            A história social da escravidão (ou escravatura) nos Estados Unidos inicia-se no século XVII, quando práticas escravistas similares aos utilizados pelos espanhóis e portugueses em colônias na América Latina, e termina em 1863, com a Proclamação de Emancipação de Abraham Lincoln, realizada durante a Guerra Civil Americana. Na origem da guerra tem-se, grosso modo, a escravidão e dois modelos econômicos opostos. O norte em expansão econômica graças à industrialização, à proteção ao mercado interno e à mão-de-obra livre e assalariada, e o sul numa economia baseada na plantação e no escravismo. As diferenças entre os estados do norte e do sul, ao contrário da dicotomização feita por alguns estudiosos, não são tão acentuadas, como é analisado por Lewis Cecil Gray no ensaio: “History of Agriculture in the Southern United states to 1860. Contributions to American Economic History” (1933).   
            O caráter capitalista da “plantation” escravista do sul, análogo aos estados do norte, era em certa medida uma contradição, mas em última instância, de oposição assimétrica no sentido formal marxista interno ao sistema econômico. Contudo, em sua complementaridade uma economia escravista tende a inibir o desenvolvimento econômico de uma sociedade capitalista, tal como apontado, neste caso pelo sociólogo Max Weber em seu livro: “The Theory of Social and Economic Organization”. Além disso, o retorno dos lucros de volta à produção, no caso de Marx, presente no norte industrializado, não ocorria da mesma forma nos estados do sul, que tinha uma acentuada tendência a um consumo intenso, daí o binômio: produção-consumo. Assim, norte e sul diferem-se na medida em que o primeiro possui um progresso econômico qualitativo com o retorno dos lucros à produção, e o sul, por sua vez, ao dirigir seus lucros em escravos e terras, possui um progresso econômico quantitativo, levando em consideração a só aparente baixa produtividade da mão-de-obra escrava.  
Esse fato histórico e ideológico (cf. Bailyn, 2003; Braga, 2012) se deve à mentalidade escravista do proprietário sulista, que investia na compra de escravos como mercadoria, pois “dava prestígio e segurança econômica e social numa sociedade dominada pelos plantadores”. Os consequentes saltos qualitativos na produção nortista levaram os proprietários sulistas a uma aguda disputa com os proprietários do norte. Se for aceita a condição capitalista para os estados do sul (Marx), assim como para os estados do norte (Weber), tem-se então uma sociedade capitalista que impediu o desenvolvimento do próprio capitalismo, fato que historicamente tende a revoltas, guerras e revoluções, ainda mais considerando que o sul apresentava economicamente problemas de produção de produtos para o consumo interno.
O “pesadelo de Northup”, interpretado por Chiwetel Ejiofor, teve início em 1841, antes da guerra civil que oficializaria o fim da escravidão nos EUA. Ele vivia em Saratoga, no estado de Nova York, com a mulher e os três filhos (foto), e trabalhava como carpinteiro e músico, animando festas na região. Dois homens convidaram Northup para se apresentar em um circo em Washington. Constituíam-se em chefe de mercenários, bandidos, guerrilheiros como ocorrera historicamente na Itália medieval e renascentista. Neste caso, analogamente eram criminosos a serviço de fazendeiros do sul escravocrata que patrocinavam o sequestro de negros livres ao norte e, com aval de autoridades, falsificavam documentos de posse. Northup foi vendido a diferentes senhores até cruzar com o mais cruel deles, Edwin Epps (Michael Fassbender). Na fazenda de Epps, onde passou a maior parte de seu tempo de cativeiro, ele testemunhou horrores como os vividos pela jovem escrava Patsey (Lupita Nyong'o), alvo do furor sexual de seu dono e dos mais sádicos castigos. Filmes recentes como “Django Livre”, de Quentin Tarantino, e “Lincoln”, de Steven Spielberg, reacenderam o tema no cinema, mas nenhum deles atinge a força histórica, humanista e política representada em “12 Anos de Escravidão”.
Apesar de o tráfico de escravos serem proibido em 1815, o contrabando continuou até o ano de 1860, enquanto que no norte crescia a campanha pela abolição. O livro “A Cabana do Pai Tomás” (em inglês: “Uncle Tom`s Cabin”), de Harriet Elizabeth Stowe, retrata uma ardente abolicionista que o publicou em 1852. No final de 1860, o estado da Carolina do Sul já havia se declarado fora da União, fato este que culminou na formação dos Estados Confederados da América. Poucos meses após a eleição de Abraham Lincoln (1809-1865), um republicano contrário à escravidão, a confederação, de cunho separatista, já aglomerava 11 estados. Assim, a guerra civil se deflagra e deixa um saldo de centenas de milhares de mortos e uma legião de negros marginalizados. Nenhum programa governamental é previsto para sua integração profissional e econômica. O sul permanece militarmente, mas isso acontece até 1877, favorecendo o surgimento de outras novas religiões como uma que se chama: “Os cavaleiros da Camélia Branca”, essa perseguia os negros violentamente e defender a segregação racial. Todas essas diferenças elencadas, não só nos aspectos produtivos, mas também diferenças de mentalidades, tal como observadas por Alexis de Tocqueville, estão diretamente ligadas à questão da escravidão. O orgulho pela “plantation” sulista, a posse de escravos, os problemas produtivos - tudo remete à escravidão, fator que se pretendeu colocar como força motriz da Guerra Civil.
            Indicado ao Oscar de direção, McQueen pode se tornar o primeiro cineasta negro a conquistar o prêmio. “12 Years a Slave” estreou no Festival de Telluride em 30 de agosto de 2013 e tem sido amplamente elogiado pela crítica. Depois de estar em desenvolvimento há algum tempo, o filme foi anunciado oficialmente em agosto de 2011 com McQueen dirigindo e Chiwetel Ejiofor estrelando como Solomon Northup, um negro livre que foi sequestrado e vendido como escravo na Deep South. McQueen comparou a conduta de Ejiofor “de classe e dignidade” à de Sidney Poitier e Harry Belafonte. Em outubro de 2011, Michael Fassbender que atuou em filmes anteriores Hunger e Shame de McQueen se juntaram ao elenco. No início de 2012, o resto dos papéis foi lançado, e as filmagens estavam programadas para começar no final de junho de 2012. Para captar a linguagem e dialetos da época e regiões o professor de dialeto Michael Buster foi trazido para ajudar o elenco na alteração de seu discurso. A linguagem tem uma qualidade literária relacionada com o estilo de escrita do dia e da forte influência do Bíblia do Rei Jaime. O estudioso de cultura e história afro-americano Henry Louis Gates Jr. foi consultor no filme. Bibliografia geral consultada:

GRAY, Lewis Cecil, History of Agriculture in the Southern United states to 1860. Contributions to American Economic History. Washington: Carnegie Institute of Washington, 1933; FAULKNER, Harold Underwood, Historia Económica de los Estados Unidos. Buenos Aires: Editora Nova, 1954; GENOVESE, Eugene, A Economia Política da Escravidão. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 1976; TOCQUEVILLE, Alexis de, A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2000; BAILYN, Bernard, As origens ideológicas da Revolução Americana. Bauru: EDUSC, 2003; BRAGA, Ubiracy de Souza, “A Hora da Verdade Norte-Americana: black or white?”. Disponível em: http://httpestudosviquianosblogspotcom/2012/11/09/; entre outros.