domingo, 9 de março de 2014

MOVIMENTOS SOCIAIS E VIOLÊNCIA DO ESTADO

Autor: Antonio Paulo Benatte (Professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa/UEPG)



É difícil entender o que se passa no Brasil desde junho de 2013. Os acontecimentos políticos, grandes e miúdos, multiplicaram-se desde então; protestos e movimentos sociais de diversos tipos pipocam em todos os lugares, das classes médias urbanas aos segmentos mais pobres, excluídos ou minoritários da sociedade. A tensão social no ar é temperada com gás lacrimogêneo, spray de pimenta e coquetéis molotov.
A resposta do Estado tem sido uma repressão brutal e crescente, cerceando o direito democrático de livre associação, expressão e manifestação. Lembremos. No dia da comemoração dos 25 anos da “constituição cidadã” de 1988, cidadãos e professores em greve apanharam publicamente na cidade do Rio de Janeiro; logo a seguir, o leilão do petróleo do campo de Libra mobilizou contingentes do exército, da marinha, da Força Nacional e da Polícia Militar, evidenciando que a política de repressão aos protestos de rua partia não apenas de governos municipais e estaduais, como também do governo federal. Desde então, a maré de movimentos e a sua repressão tem sido constante e permanente, com fluxos e refluxos.
Quando começaram os cassetetes, as balas de borracha, o spray de pimenta e o gás lacrimogênio, foi como se ocorresse um curto circuito no tempo. Como se uma máquina do tempo nos levasse aos anos 1980, ou mesmo aos anos da ditadura midiática-civil-militar de 64, à ditadura varguista do Estado Novo, ou ainda aos começos da república, com seu positivismo da “Ordem e progresso” a qualquer custo, da governabilidade truculenta, tempo da Revolta da Vacina, do massacre de Canudos, Contestado, etc. A história se repete, a diferença é apenas de grau.
Greves e ocupações são reprimidas com violência em muitas partes. Ativistas e militantes são vigiados e perseguidos, enquadrados por atos de vandalismo e formação de quadrilha. Os casos de prisão, tortura e morte desenham a face mais hedionda de uma série de acontecimentos que desmascaram a falácia institucional do “Estado democrático de direito”. A violência, evidentemente, é mais crua sobre os anônimos das periferias. Quantos Amarildos são presos, torturados e assassinados nas periferias das cidades? No campo, líderes e sem terras são assassinados por lutarem pela reforma agrária, prevista na constituição. Comunidades indígenas veem-se ameaçadas em seus direitos de demarcação de terras, também um direito constitucional.
Enquanto isso, um novo tipo de espionagem estatal, sob os auspícios da ABIN (Agência Brasileira de Informação), instaura veladamente uma vigilância sob as redes sociais. Sob a alegação de espionagem internacional, o governo brasileiro deixará de utilizar softwares cujos fabricantes não permitam monitorar os acessos à rede mundial de computadores. E logo teremos um marco regulatório da internet, tão importante na maré das manifestações de junho.
O caso das leis da Copa faz lembrar o ano de 1968, com a promulgação do AI-5 e a dura repressão que se lhe seguiu. Mais longe ainda no tempo, os projetos de leis repressivas que tramitam no Senado evocam a famigerada Lei de Segurança Nacional. Nos meados dos anos 1930, durante o governo Vargas, a política de esquerda se fortaleceu; na contramão, o Congresso se tornou cada vez mais conservador, debatendo o caso dos “subversivos” e aprovando a Lei de Segurança Nacional que dava ao governo maior poder de ação sobre as ações consideradas “subversivas”, principalmente a ação dos comunistas. Com o medo da “ameaça vermelha”, o poderio do Executivo foi aumentando gradativamente; em 1936, o estado de sítio declarado pelo poder Executivo foi estendido; no mesmo ano, em novembro, foi aprovado o Tribunal de Segurança Nacional, dando a Vargas um novo instrumento de perseguição e repressão a qualquer movimento que fosse contrário às ideias e práticas de seu governo. Ora, essa mesma lei, durante os “anos de chumbo” que se seguiu ao golpe de Estado de 1964, foi empregada para caçar, torturar e assassinar milhares de militantes.
Na história do Brasil, o militarismo, o autoritarismo e o abuso de poder nunca deixaram de estar na ordem do dia. A Polícia Militar aprende na mesma cartilha que formava as forças armadas da ditadura. Quando enfrenta uma manifestação, eles entendem que o povo é inimigo. Daí a demanda pela desmilitarização da polícia e da política; enquanto isso, a polícia se torna cada vez mais uma polícia política, assim como na ditadura varguista e na ditadura midiática-civil-militar a partir de 64.
Como nas duas últimas ditaduras, mais uma vez o Estado tem a conivência e o apoio das grandes mídias, eficazes no processo de criminalização dos movimentos, protestos e manifestações. Como dizem Michael Hardt e Antonio Negri, as grandes mídias buscam nos conduzir “pelos regimes de produção linguística e comunicativa: destruí-los com palavras é tão urgente quanto fazê-lo com ações.” Daí que vejo com otimismo o crescimento de mídias alternativas e a demanda pela democratização das grandes corporações midiáticas, a começar pela Rede Globo – que, como se sabe e se grita nas ruas, cresceu apoiando o governo dos militares. Como diria Maquiavel, “Governar é fazer crer”. O Estado, mancomunado com as grandes mídias, quer fazer crer uma série de coisas, inclusive que vivemos em uma democracia quando, de fato, vivemos em uma ditadura que cerceia e reprime não apenas os movimentos sociais organizados quanto os indivíduos, notadamente os mais pobres.
Em suma, entre as grandes questões de nosso tempo está o recrudescimento da violência do Estado contra a sociedade; ou melhor, contra determinados segmentos dela: os segmentos politicamente dominados e economicamente explorados há séculos; os movimentos que lutam pela conquista e manutenção de direitos básicos, sociais, políticos e civis.
A constituição de 1988 dispõe, em seu artigo 5º, sobre os direitos e garantias fundamentais do indivíduo, resguardando de forma taxativa os princípios cernes dos direitos civis e políticos. Os direitos de primeira geração consistem nos direitos políticos e civis. No âmbito político: direito a voto, participação política, direito a associação. No âmbito civil: integridade física, direito de ir e vir.
Desse ponto de vista, a ditadura no Brasil não acabou. Na história política recente não há verdadeira solução de continuidade entre a última ditadura e a mais recente democracia. Para além dos discursos, as práticas evidenciam a inexistência de rupturas efetivas. O militarismo, o autoritarismo, o abuso de poder é uma estrutura de longa duração, inerente a um estado histórico de coisas. Precisamos repensar e reescrever totalmente a história do último meio século, ao mesmo tempo em que lutamos contra todo tipo de autoritarismo no Estado como na sociedade. Penso que essa é uma herança maior da maré de movimentos que arrebenta o país desde julho de 2013.
Nas ruas somos como um enxame dispersado com violência e fumaça. Mas os enxames não são dóceis; possuem os ferrões do calor de vários corpos, inúmeras potências e vontade de ação. O Estado, as instituições e as corporações já se deram conta disso; daí a necessidade dos gritos de não violência e a insaciável busca por uma docilidade dos manifestantes. O silêncio e a inação nos fazem dóceis, domesticados; perpetuam a conivência e o acomodamento. Constituímos uma multidão; o participante político do século XXI vive em meio ao solapamento das representações. Dessa forma, nosso papel deve ser de atividade constituinte e não representativa; “a criação da história é, nesse sentido, a construção da vida da multidão”, conforme Hardt e Negri.

À violência e ao policiamento do cotidiano, sintetizados na prática do controle, há que se responder com um mesmo potencial, de uma ruptura produtora de descontinuidades e da tentativa de sinalizar o inesperado, o atual, o que ainda não existe e que só pode ser parido pela história ao mesmo tempo individual e coletiva. Essas potências são múltiplas e construídas na nervura do atual, que passam do virtual para o possível dos desejos, dos afetos, das forças e das novas formas de articular a vida de todos os dias.